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50 ANOS DA MORTE DE VARGAS
Em 24 de agosto de 54, suicidou-se o presidente cujas políticas criaram o Brasil moderno; desde os anos 90, os governantes brasileiros tentam desmontar a herança da era getulista
A desconstrução de Getúlio
FREDERICO VASCONCELOS
MARCELO BILLI
DA REPORTAGEM LOCAL
Luiz Inácio Lula da Silva é o 21º
presidente a governar o Brasil
desde que Getúlio Vargas se suicidou há 50 anos, em meio a uma
turbulenta crise política. Getúlio
assombrou, de uma forma ou de
outra, todos eles. Para muitos, governar significou usar as instituições e modelos que, implementados por Vargas na década de 30,
fundaram o Brasil moderno.
Após Fernando Collor (1990-1992), parte do trabalho dos governantes é tentar desmontar o
que se convencionou chamar de a
herança da "era Vargas".
Se levar adiante as reformas sindical e trabalhista que prega, o
atual governo deve contribuir
mais um pouco para dar ao Brasil
uma cara diferente daquela herdada de Getúlio. "Não deixa de
ser irônico que as últimas grandes
reformas [trabalhista e sindical]
possam ser feitas pelo presidente
do Partido dos Trabalhadores",
nota o historiador Boris Fausto.
Ninguém discorda que o século
20 brasileiro foi marcado pelos
modelos e instituições criados por
Getúlio. Tampouco há controvérsia a respeito do fato de que, a partir dos 90, aquele modelo começou a desmoronar -como um
reflexo das políticas de redução da
presença do Estado na economia,
por meio de privatização, abertura comercial e ajuste fiscal. Mas na
hora de avaliar se a desmontagem
da era Vargas é positiva ou não, os
brasileiros se dividem.
Qual foi a cara do Brasil entregue por Getúlio a seus sucessores?
Ele havia liderado a Revolução de
30, movimento progressista que
derrubou as oligarquias paulistas
e mineiras que dirigiam o país.
Revolução cujos líderes propunham a modernização, em época
em que modernidade se confundia com industrialização.
Era um período de crise, um
mundo de nações que, terminada
a Primeira Guerra, não confiavam
no livre comércio. Ao Brasil, a
guerra ensinara que não se podia
depender tanto da exportação de
café e que nem sempre era possível importar o que precisávamos.
Com o novo governo surgiu o
nacional-desenvolvimentismo, o
modelo do Estado empresário,
que financiava a produção e o investimento, protegia as empresas
da concorrência externa e priorizava o mercado interno. Este modelo levou o governo a criar empresas que estão hoje entre as
maiores companhias brasileiras,
como a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) e a Petrobras.
Foi um período, entre 1937 e
1945, com o chamado Estado Novo, de modernização autoritária e
paternalista: o governo obrigava
os profissionais a se sindicalizarem, controlava os sindicatos, intermediava a relação entre trabalhadores e patrões, concedia novos benefícios sociais, censurava e
vigiava os meios de comunicação.
O Brasil necessitava de instituições modernas. Getúlio as criou
no seu primeiro período na Presidência (1930-1945): novos ministérios, legislação para regular os
contratos de trabalho, sistema
previdenciário, instituições para
financiar o crescimento industrial, como o BNDES.
Do ponto de vista do desempenho econômico, a receita surtiu
efeitos. Durante as décadas de 30 e
40, a economia cresceu em média
5% ao ano, mesmo as taxas recordes das décadas posteriores
-nos anos 70 elas atingiram 10%
ao ano- foram atingidas graças à
estrutura e ao modelo herdados
da "era Vargas". Abandonada
apenas nos anos 80, a receita
transformara o Brasil em uma das
dez maiores nações industriais.
Mas os anos 80 foram de estagnação, e os brasileiros começaram
a olhar para o passado, buscando
as causas da perda de dinamismo.
Na Inglaterra, a primeira-ministra Margaret Thatcher havia iniciado, em 1979, um programa de
desregulamentação, privatização
e redução de impostos sem precedentes. Nos EUA, Ronald Reagan,
a partir de 1981, iniciara um programa de redução de impostos.
Os dois exemplos foram adotados pelos economistas liberais e
por instituições como o FMI
(Fundo Monetário Internacional)
como receitas para a volta do
crescimento. O Brasil adotaria a
receita a partir dos 90.
Se as atuais reformas já dividem
os brasileiros, a avaliação da abertura da economia e das mudanças
pelas quais passaram as instituições brasileiras desde o governo
Collor e de forma mais sistemática durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) causam ainda mais controvérsia, além de debates calorosos.
De um lado, estão os que avaliam que, se o modelo implementado por Getúlio ajudou o Brasil a
se desenvolver até meados dos
anos 70, ele se tornou uma barreira ao desenvolvimento a partir de
então. Defendem, inclusive, que a
desmontagem feita até agora foi
incompleta e que faz falta uma espécie de "demolição".
"Nosso mercado de trabalho
ainda é fortemente regulado. A
economia brasileira ainda é relativamente fechada e pouco integrada. O Estado ainda tem uma presença muito forte na economia",
avalia o economista Eduardo
Giannetti da Fonseca.
Ao contrário de Fausto, que enxerga na década de 90 uma ruptura histórica, com o abandono do
modelo nacional-desenvolvimentista inaugurado por Getúlio,
Giannetti afirma que o processo
de mudança foi lento e gradual.
"Não houve ruptura, não tivemos
por aqui nada como uma Thatcher. A resistência foi e é grande."
Para Giannetti, se por um lado
os anos Vargas foram um período
de grande investimento em capital físico -instalações, máquinas,
equipamentos-, por outro não
houve o mesmo esforço na formação de capital humano -educação, planejamento demográfico, saúde pública. Não foi apenas
uma omissão getulista, lembra
ele, mas explica grande parte da
desigualdade de renda brasileira,
uma das piores do mundo.
Do lado oposto, há os que criticam as reformas. O sociólogo
Francisco de Oliveira, por exemplo, avalia que FHC foi pretensioso quando, eleito presidente pela
primeira vez, pregou em discurso
o "fim da era Vargas". Qual o efeito das reformas implementadas
desde então? "O que o período
neoliberal está fazendo é excluir a
classe trabalhadora da política.
Parece uma aberração, haja vista
que quem está no governo é o
Partido dos Trabalhadores. [O
governo] está fazendo o contrário
do que a era Vargas fez."
Assim, do lado de Giannetti estão os que avaliam que, para se
modernizar e tornar-se mais
competitivo e justo, o Brasil deve
se livrar de vez da herança da "era
Vargas". Do lado oposto, estão os
que interpretam as reformas como o abandono de um projeto
nacional caro ao país. Abandono
que resultará em exclusão e desigualdade cada vez maiores.
"FHC com muita consciência
disse que iria virar a página do getulismo na história brasileira. A
herança que ele deixa é a financeirização da economia. O capital especulativo chegou a enfraquecer a
força do Estado e a identidade nacional", diz Emir Sader, professor
de sociologia da USP.
Críticos ou não da "modernização" dos anos 90, todos concordam que Getúlio foi personagem
central da história brasileira e que,
depois dele, e provavelmente por
mais algum tempo, os governantes brasileiros terão que lidar ainda com a herança getulista.
Herança que não se reduz aos
aspectos econômicos. "Vargas
nos deixou também como legado
muito forte certa debilidade democrática", avalia a historiadora
Maria Tucci Carneiro, da USP.
A democracia brasileira ainda
engatinha e, diz ela, não são raros
os momentos em que os governos
brasileiros parecem vacilar. "Persiste ainda uma vontade populista
e demagógica, uma defesa do estado interventor inclusive no plano das idéias e uma certa dificuldade em lidar com as críticas", argumenta Tucci Carneiro.
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