São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004 |
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Nacionalismo após o furacão neoliberal
Para o presidente do BNDES, a agenda de Lula se inspira no nacional-desenvolvimentismo de Getúlio
CARLOS LESSA ESPECIAL PARA A FOLHA É notável que, 50 anos após o desaparecimento de Getúlio Vargas, continuamos caudatários da agenda que ele inaugurou, e em torno da qual mobilizou grande parte da alma e da energia da nação. Foi ele quem colocou em pauta o imperativo nacional de um programa energético, de um programa logístico, de um programa da indústria de base via desenvolvimento da siderurgia. O que somos, hoje, somos em grande parte como um produto da era Vargas. Não foram e não são sonhos abstratos: a Petrobrás é Vargas, a Vale do Rio Doce é Vargas, e o BNDES, que tanto me orgulho de presidir, é Vargas. Não vou fazer um inventário das obras do grande presidente. Muitos o têm feito, alguns com grande competência. Estou mais interessado num aspecto ao mesmo tempo mais abstrato e mais decisivo. Vargas fez, na política e na condução do Estado, o que os modernistas fizeram com as artes, sobretudo com a literatura e a pintura após 22: ele desnudou a autêntica alma brasileira. Ele inventou nossa auto-estima no plano político. Ele nos fez acreditar em nossa própria capacidade de construir. Cumpriu o enunciado de Fernando Pessoa: "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena". Um presidente de alma seca achou, recentemente, que devíamos enterrar definitivamente a era Vargas. Quem fecha uma agenda tem a obrigação de abrir uma outra. Qual foi a agenda que abriu este presidente? Ele nos prometeu o sonho neoliberal. E começou a realizá-lo pela desconstrução da era Vargas, da era JK e da era Geisel. Mas o que ele fez de positivo, o que construiu? O que ele deixou como legado? Aqui, no BNDES, temos alguns legados dessa era que se pretendeu pós-Vargas. São os chamados esqueletos. Esqueletos da privataria, como a imprensa gosta de chamar. Quando um dia for vista pelos pósteros, a história brasileira contemporânea perceberá como um mero acidente de percurso este período pretensamente revisionista. Claro, não somos nem saudosistas da estatização, nem indiferentes ao avanço inexorável dos processos econômicos, sociais e políticos. A agenda de Vargas não vai se repetir literalmente. O que acontece é que, depois da desconstrução neoliberal, ela se recoloca em termos contemporâneos com todo o vigor. Ou não temos um desafio energético, de infra-estrutura logística, na indústria de base, um desafio da reconstrução do Estado desenvolvimentista? Mas a agenda que a história e a nacionalidade nos estão impondo, na essência inspirada em Vargas, é, de novo, ainda mais crucial no plano abstrato que no plano físico. É isso que percebeu o presidente Lula, com sua fantástica sensibilidade política, ao repor no centro da agenda brasileira a recuperação da auto-estima nacional. Somos, sim, capazes de construir. Construir um lugar ao sol para cada um dos nossos concidadãos, fazer deste país uma verdadeira democracia social, promover nos trópicos o Estado do bem-estar social e do pleno emprego. Vargas não imaginou isso. Imaginou uma industrialização que acabou acontecendo. Assim, nos ensinou a imaginar coisas aparentemente impossíveis. Se estivesse aqui, estaria sonhando o sonho social aparentemente impossível, o sonho da inclusão de todos os brasileiros que o presidente Lula colocou em sua pauta como prioridade absoluta. Junto com a auto-estima, aprendemos de Vargas o sentido da nacionalidade. Deixamos de nos envergonhar de nossa realidade para querer transformá-la segundo as nossas próprias utopias. Tomamos, sim, consciência do nosso atraso em muitos aspectos, desde o campo industrial ao campo institucional. Mas aceitamos o desafio de construir uma nação que se respeita e se reconhece em instituições vivas, participativas, sócias do desenvolvimento material e espiritual do país. Sem chauvinismo, aprendemos a valorizar o que é nosso, nossas memórias e os legados dos nossos antepassados. Enfim, com Vargas, nos vimos realmente como nação. E é assim que começamos a nos ver de novo -depois do furacão neoliberal que trocou o desenvolvimento com endividamento dos militares pelo endividamento sem desenvolvimento de Fernando Henrique Cardoso-, neste momento em que a agenda recuperada de Vargas nos aponta uma continuidade entre o nacional-desenvolvimentismo dele e de sua época e o desenvolvimentismo nacional democrático de Lula. CARLOS LESSA é presidente do BNDES. Texto Anterior: 50 ANOS DA MORTE DE VARGAS A desconstrução de Getúlio Próximo Texto: O petróleo é da nação Índice |
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