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Regime autoritário e tempero positivista
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O autoritarismo brasileiro tem
sua própria história: não é um
mero reflexo do que ocorreu na
Europa ou a reprodução atrasada,
tardia, do nazifascismo. O Estado
Novo foi apenas um momento
deste processo -que não parece
encerrado. A gênese pode ser encontrada no final do século 19,
quando um grupo de republicanos, desiludidos com os rumos do
novo regime, criticou severamente o domínio da elite política latifundiária, "a república dos fazendeiros". A reforma econômico-social passava pelo controle do
governo central; porém isto não
se daria apelando ao voto. Lembrando Karl Marx, era necessário
assaltar o céu. O autoritarismo reformista -afinal nem todo autoritário é reacionário- apontava
para a organização de um Estado
forte, distante do liberalismo conservador das elites brasileiras.
Os revolucionários de 30 vão
realizar esta tarefa -tendo à frente Getúlio Vargas. A criação de
ministérios, secretarias, autarquias e de uma ampla legislação
econômico-social, deu ao país as
condições necessárias para enfrentar os grandes desafios colocados pela crise mundial de 1929.
Retirar o Brasil da crise econômica, reinserí-lo em uma ordem
mundial complexa, como a dos
anos 30 -marcada pela consolidação do fascismo na Itália, do salazarismo em Portugal, a ascensão do nazismo na Alemanha e a
depressão que atingiu os Estados
Unidos-, permitindo a recuperação econômica já em meados
de 1933, só poderia ser realizado
por um Estado forte e sob novas
bases sociais, rompendo com a
Política dos Governadores idealizada por Campos Sales. Ou seja,
não seria possível realizar o programa reformista no interior da
ordem liberal tradicional, devido
ao domínio exercido pelas elites
políticas latifundiárias das estruturas do Estado, especialmente a
burguesia cafeeira. Esta deu seu
último suspiro em 1932: derrotada, abriu caminho para o estabelecimento da modernidade.
Nos 15 anos do primeiro governo, somente entre 1933-1935 é que
Getúlio teve de conviver com um
Congresso Nacional atuante. Nos
13 anos restantes governou 3 com
o Legislativo fechado (1930-1933),
outros 2 renovando periodicamente o Estado de Guerra (1935-1937) e mais 8 sob a vigência da
Constituição de 1937, que dava
amplos poderes ao presidente.
A dificuldade de se enquadrar
em uma ordem democrática não
era só de Vargas: seus opositores
tentaram três vezes derrubá-lo
com movimentos armados, como
os liberais em 1932, os comunistas
em 1935 e os integralistas em 1938.
Foi neste ambiente, sem tradição
democrática, que não distinguia a
baioneta do voto, que foi gestado
o autoritarismo varguista.
O presidente buscou se equilibrar entre as diferentes facções
políticas que compuseram seu
governo e nem sempre fez o que
desejava, como pode ser observado pela leitura dos seus diários.
Administrou vaidades, concedeu
prebendas, até para seus adversários, mas nunca teve o poder absoluto. Até porque, devido a ampla repressão política, especialmente depois de novembro de
1935, tinha inimigos desde à direita, passando pelo centro até chegar à esquerda. O mais estranho é
que tenha conseguido ficar 15
anos no poder.
É um lugar comum associar o
varguismo e o fascismo, embora
não haja relação substancial entre
um e outro. Onde estão o partido
único e os sindicatos corporativos, tão essenciais ao fascismo?
Em seus discursos (basta consultar os volumes de "A Nova Política do Brasil") não há referências a
conceitos fascistas.
É fascista porque regulamentou
os sindicatos? Por que criou a Justiça do Trabalho? Ou devido a
promulgação da Consolidação
das Leis do Trabalho? Getúlio
agiu de acordo com o figurino autoritário brasileiro, temperado
com a tradição castilhista gaúcha,
onde o positivismo foi adotado
como política de Estado, caso único não só no Brasil, como no
mundo. Seu ídolo nunca foi Mussolini, mas sim Júlio de Castilhos:
"Um santo. É santo porque é puro, é puro porque é grande, é
grande porque é sábio, é sábio
porque, quando o Brasil inteiro
debate-se na noite trevosa da dúvida e da incerteza, quando outros Estados cobertos de andrajos
com as finanças desmanteladas,
batem às portas da bancarrota, o
Rio Grande é o timoneiro da Pátria, é o santelmo brilhante espargindo luz para o futuro".
Dada a conjuntura mundial volátil e a fragilidade do poder interno, Vargas teve de construir políticas ao sabor dos acontecimentos, sem que necessariamente pudesse prever o que iria ocorrer. A
racionalização elaborada por pesquisadores, anos depois, dá uma
coerência que não foi estabelecida
a priori. Esta espécie de quarta via
-distante tanto do fascismo como do liberalismo e do comunismo-, associou ousadas reformas
econômicas, sociais e educacionais, com uma política externa
com laivos de independência,
rompendo com o imobilismo de
décadas do Itamaraty, desde a
morte do Barão do Rio Branco.
Tudo isso, tendo um projeto nacional esboçado em pleno calor
da hora e o Estado como principal
indutor do desenvolvimento.
Com o final da Segunda Guerra
Mundial e as modificações ocorridas no Brasil decorrentes dos próprios êxitos econômicos do getulismo (desenvolvimento da indústria, urbanização, ampliação
do aparelho de Estado), o autoritarismo estava com seus dias contados. Pena que o 29 de outubro
de 1945 tenha sido um golpe militar reacionário.
Marco Antonio Villa é historiador, professor do departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil" (Globo).
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