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Brasil brasileiro nasce com Vargas
Governo de Getúlio adotou intervenção do Estado na cultura para disseminar uma imagem moderna do país
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
O Brasil do samba, da mulata,
do Carnaval, da feijoada, do futebol, do malandro, da democracia
racial, da natureza desconcertante, do barroco mineiro e da arquitetura moderna foi uma invenção
da era Vargas.
Foi no governo de Getúlio Vargas que se moldou, nos anos 30, a
imagem do Brasil moderno. A
matéria-prima usada foi o turbilhão de idéias e projetos que circulavam havia duas décadas,
muitas das quais aparentemente
inconciliáveis, mas que tinham
um traço em comum: eram chamadas de "modernas".
O próprio Getúlio chegou a
apontar paralelos entre a Revolução de 1930 e o movimento modernista de 1922. O parentesco
mais óbvio é que ambos queriam
salvar o Brasil: os modernistas, da
cultura bacharelesca, e Vargas,
das "elites atrasadas".
A convergência de interesses era
ampla o suficiente para Getúlio
ter tido sob suas ordens um panteão modernista: Carlos Drummond, Mário de Andrade, Lúcio
Costa, Oscar Niemeyer, Villa-Lobos e Portinari (até Graciliano Ramos, preso em 1936 pela polícia
getulista, torna-se inspetor federal de ensino três anos depois).
Para salvar o Brasil do atraso,
Getúlio precisava criar uma nova
mitologia para o país, "um novo
modelo de autenticidade", como
define o antropólogo Hermano
Vianna. Os modernistas já haviam esboçado esse novo mundo
com a reverência que dedicavam
à cultura popular, ao barroco e ao
nativismo. Talvez não seja coincidência o fato de Getúlio ter sido o
primeiro presidente a visitar uma
área indígena -em 1940, entrou
numa aldeia dos carajás.
Com a chegada de Vargas ao
poder, parte do ideário modernista foi convertido em política de
governo. O Estado fez uma intervenção na cultura numa escala
sem precedentes no país ao passar
a ter uma atuação na música, no
cinema, no teatro, no livro e na
educação, segundo Sérgio Miceli,
professor de sociologia na USP e
autor de "Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945)", trabalho de 1979 que se tornou referência sobre o tema. "O Estado
transforma a cultura numa área
de atuação política. Essa característica perdura até hoje", afirma.
A transformação do samba carioca em música nacional por um
presidente gaúcho, processo dissecado por Hermano Vianna em
"O Mistério do Samba", talvez
ilustre a complexidade da intervenção. A grande questão para os
grupos que apoiavam Getúlio, como escreve Viana, era "encontrar
determinados traços culturais
que pudessem ser aceitos, pelo
maior número de "patriotas", como aquilo que existe de mais "brasileiro" em seu país".
O samba envolvia grupos tão
distintos quanto negros e milionários, cariocas e baianos, intelectuais (Afonso Arinos) e músicos
de vanguarda (Darius Milhaud).
Não faltam exemplos dessa
aprovação ao samba. Afonso Arinos, presidente da Academia Brasileira de Letras, freqüentava nos
anos 10 a república de Pixinguinha e Donga; os Oito Batutas
(grupo de Pixinguinha) já haviam
tocado para os reis da Bélgica.
Getúlio não se limitou a entronizar o samba como ritmo nacional. Um decreto de 1937 obrigava
as escolas a adotar enredos cívicos
ou históricos.
A maior parte desse processo
antecedeu Getúlio, mas foi no seu
governo que as rádios e as gravadoras transformaram o samba
em fenômeno de massa.
Ele percebeu logo o papel que o
rádio poderia ter em sua política
de criar símbolos nacionais. Em
1932, uma lei previa o "Programa
Nacional", que se materializaria
sete anos depois com "A Hora do
Brasil". Em 1937, quando Getúlio
cria o Estado Novo, usa o rádio
para fazer o primeiro pronunciamento em rede no país. Em 1940,
o governo encampa a Rádio Nacional por uma razão estratégica:
tinha transmissores mais potentes. Na Nacional, o governo passa
a usar a seu favor o estrelato que
nascera no rádio por meio de cantores como Linda Batista, Francisco Alves e Carmen Miranda.
As faces desse mundo do espetáculo podiam ser vistas no teatro
de revista, nos filmes da Cinédia e
nas nascentes revistas.
A produção oficial de cinema
mostra que não havia uma só receita do Estado. O Instituto Nacional de Cinema Educativo, criado em 1937, privilegiava a educação; o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) fazia o culto à personalidade de Getúlio.
A imagem da nação nos filmes
de Humberto Mauro seguem o
ideário do século 19, segundo a
historiadora Sheila Schvarzman,
professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas): é
grandiloqüente, parnasiana. "O
Brasil é feito de natureza e tudo é
excepcional: a vitória-regia, o peixe elétrico. E há sempre o endosso
da ciência".
A escolha de intelectuais do modernismo para ocupar cargos no
governo Vargas, de acordo com
Miceli, deve-se à aproximação do
movimento com a arte popular.
Ele gosta de usar uma comparação para frisar a importância que
intelectuais como Rodrigo Melo
Franco de Andrade e Lúcio Costa
tiveram: além do Brasil, só o México na América Latina preservou
o seu patrimônio histórico.
A ação do Estado na arquitetura
ilustra um pouco a estratégia de
Getúlio de cortejar a direita e a esquerda do espectro político. "É
um engano achar que o governo
Vargas só deu força para o modernismo. Ele ergueu também
prédios que têm algo da arquitetura fascista da época", diz Silvana
Rubino, professora de história da
arquitetura da Unicamp.
Getúlio Vargas bancou o primeiro arranha-céu modernista
do mundo -o Ministério da
Educação no Rio-, mas fez também a sede neoclássica do Ministério da Fazenda.
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