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A doce vida na capital de um país dividido
Quando o Rio era uma festa, o mundo se repartia entre lacerdistas e getulistas
DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA
Era a madrugada de 5 de agosto
de 54, e já estávamos dormindo
quando o telefone tocou. Samuel
atendeu, acendeu o abajur e, à
medida que ouvia, ia se aprumando, se sentando; acabou o telefonema em pé, vestindo a calça.
- O quê? Atentado na rua Tonelero? Mataram um major da
Aeronáutica? Mataram Lacerda
também? Não? Merda!
Em segundos, ele saiu e foi para
a "Última Hora". Estávamos casados havia dois meses, esperava
meu primeiro filho, e durante um
bom mês quase não nos vimos.
Tinha chegado de Paris em
maio de 53, depois de ter trabalhado por dois anos como manequim de Jacques Fath. Em julho,
estava numa noite no Bar 36, em
Copacabana, quando um amigo,
Sergio Figueiredo, levantou-se e
disse que tinha que ir. "Vai para
onde?", perguntei. "Visitar Samuel Wainer na cadeia. Quer ir?"
Claro que fui. Fui e me apaixonei.
Nos anos 50, o Brasil era dividido entre lacerdistas e antilacerdistas. Lacerdistas eram os partidários de Carlos Lacerda, ídolo da
UDN, jornalista com um talento
único, o de destruir. Seu objetivo
de vida era derrubar Getúlio Vargas e fechar a "Última Hora", jornal de seu amigo de juventude Samuel Wainer, que apoiava o governo. Os antilacerdistas eram os
outros -e nós.
Samuel -que havia sido preso
por se recusar a revelar a uma CPI
quem financiara o jornal- tinha,
então, 42 anos, 43? Não me lembro. Eu, 19. Caí no olho de um baita furacão sem perceber seu tamanho e sua gravidade, e meu pai
não foi contra, só exigiu que nos
casássemos legalmente. Samuel
podia, pois era viúvo da primeira
mulher e o seu segundo casamento -que ainda vigorava- era
dos modernos, "no Uruguai". Eu
havia encontrado, enfim, um
bom motivo para ficar no Brasil.
O Rio era uma festa
O Rio, quando capital da República, era uma festa. As embaixadas recebiam para "cocktails" e
jantares todas as noites, e o "society" -era assim que se dizia-
tropeçava com o poder nos restaurantes e nas boates da cidade.
Boates, não: no Vogue, que era
"a" boate. Começava a noite como restaurante, com um pianista
tocando; mais tarde as luzes baixavam, entrava um conjunto, e os
casais começavam a dançar.
Elas, de chapéu, luvas ou vestido
de baile; calça comprida, nem
pensar. Os homens só entravam
de gravata, e, para facilitar algum
romance, havia telefones nos toaletes feminino e masculino.
Depois da 1h, Aracy de Almeida
se ajeitava num banquinho e começava a cantar; mais tarde era a
vez de Linda Batista. Elas não
eram "crooners", mas também
não era um show. Todo mundo
dançava e conversava, enquanto
elas cantavam. O repertório de
Aracy era basicamente Noel Rosa,
misturado com sucessos como
"sinto uma dor no meu peito, só
você poderia dar jeito". Já Linda
atacava mais de Lupicínio Rodrigues. O Vogue parava quando
cantava: "Só vingança, vingança,
vingança aos santos clamar."
Os mais assíduos tinham mesa
cativa; quando chegava um não-assíduo importantíssimo, era
providenciada uma mesa de pista
por Luiz, o maître bonitão que diziam ter um romance com uma
chiquérrima da época.
Tinham mesa cativa no Vogue
Bejo Vargas, irmão do presidente;
Napoleão Alencastro Guimarães,
belo gaúcho de quase dois metros,
diretor da Central do Brasil; Vadinho Dolabela, pai do ator Carlos
Eduardo Dolabela e avô do Dado,
com a deslumbrante Vânia Pinto,
ex-miss Brasil.
Esses eram os que você encontrava to-das as noites; aí tinha os
que você encontrava qua-se todas
as noites, que eram os deputados,
senadores, a secretária particular
de Getúlio, Lourdes Lessa, embaixadores, as rainhas da elegância
Lourdes Catão e Thereza Souza
Campos, a deslumbrante Dolores
Guinle, mulher de Jorginho.
Com o dia clareando, iam-se
juntando na porta boêmios que
vinham de outros lugares, de camisa esporte. Às vezes, atravessávamos a rua para um fim de noite
na boate Tasca, onde tocava um
jovem pianista que ainda ninguém conhecia: Tom Jobim.
Alguns saíam em conversíveis,
outros, mais românticos, tiravam
os sapatos, atravessavam a areia
da praia de Copacabana e passeavam de mãos dadas, com os pés
na água. Às vezes, elas usavam
vestido longo, eles smoking. Uma
verdadeira "Dolce Vita" tropical.
Só anos depois fui entender por
que, recém-casados, eu e Samuel,
saíamos tanto; a bem da verdade,
todas as noites. A noite era excelente campo para um jornalista
como ele fazer contatos e saber de
notícias em primeiríssima mão.
Antes de irmos para casa, de
madrugada, era obrigatória uma
passada pelo jornal, que já estava
rodando. Samuel ia até a redação,
à oficina, batia um papinho com
cada um que encontrava e saía
com dois exemplares quentinhos
da "UH" na mão. E vibrando.
Lacerda e o filho de Samuel
Nos casamos em junho de 54,
num cartório em Petrópolis. Samuel nunca tinha tido filhos e,
quando Lacerda soube da gravidez, aproveitou para fazer uma
suprema cafajestada: seu jornal
-a "Tribuna da Imprensa"-
publicou, em manchete, que ele
iria ter um filho brasileiro para
não ser expulso do país.
Rapidinho: a família Wainer
imigrou da Bessarábia para o Brasil nos idos de 1910, com vários filhos, e a dúvida era se Samuel havia chegado de lá ou se havia nascido aqui. Se fosse bessarabiano,
não podia ser dono de jornal e poderia ser expulso do Brasil; se tivesse um filho brasileiro, a lei assegurava seu direito de permanecer no país. A baixaria de Lacerda
não me afetou, mas comecei a ver,
aos 20 anos, como pode ser sórdido o ser humano.
Relembrando: o atentado da
rua Tonelero foi no dia 5 de agosto, Getúlio se suicidou no dia 24.
Durante esse tempo mal vi Samuel, que passava os dias -e as
noites- no jornal. Ninguém tinha idéia do que ia acontecer: se a
renúncia, se um golpe de Estado,
seguido ou não de guerra civil, se
a "UH" seria fechada ou empastelada, quem iria para a cadeia, se os
de lá ou os de cá.
Morávamos num apartamento
alugado por 12 mil não sei o quê,
na av. Rui Barbosa (por coincidência, ao lado do de dona Darcy
Vargas). Ainda não tínhamos
móveis na casa, só no quarto: uma
cama e duas mesas de cabeceira.
A casa ia ser atapetada, como se
usava na época, e grandes rolos de
tapete de sisal estavam na sala, esperando a colocação.
A semana que antecedeu a morte de Getúlio foi de nervosismo:
haviam chamado Bejo Vargas para depor na República do Galeão
(inquérito do atentado, que fazia
seus interrogatórios na base do
Galeão), e corria o boato de que
chamariam d. Darcy.
Reuniões no tapete
Entre o atentado da Tonelero e o
suicídio de Getúlio, havia reuniões em nossa casa todas as noites, e eu ficava fechada no quarto,
enquanto eles ficavam na sala, varando a madrugada, tomando litros de café (e eu preocupada com
o horário da empregada).
Na do dia 23 estavam, sentados
nos rolos de tapete ou no chão,
Alzira, Maneco e Lutero (filhos de
Getúlio), Danton Coelho e outros,
discutindo possibilidades e traçando estratégias em caso de golpe ou resistência.
Eu não sabia direito o que estava
acontecendo; Samuel não tinha
tempo para me contar (quando
acabavam as reuniões, ele saía
correndo para o jornal) e, se contasse, eu também não ia entender
bem. Achava a UDN antipática,
não sabia direito quem eram
aqueles aborrecidíssimos senhores de terno escuro que nunca
sorriam, se achando os donos da
verdade, fazendo discursos de
boa oratória, mas beirando o ridículo, querendo tirar o poder de
Vargas. Gente feia e triste; nosso
lado era melhor.
Sinto nunca ter conhecido Getúlio para ouvir aquela boa risada
que se adivinhava nas fotos, mas
Alzira foi madrinha de batismo de
minha filha Pinky.
A banda de música da UDN se
fazia ouvir diariamente. No dia 9
de agosto, um dos seus mais barulhentos componentes, o líder, o
deputado Afonso Arinos de Melo
Franco, fez um discurso de suprema agressividade contra Vargas;
os lacerdistas deliraram.
"(...) Eu falo a Getúlio Vargas,
como presidente e como homem.
(...)Tenha coragem de perceber
que o seu governo é, hoje, um estuário de lama e um estuário de
sangue. (...) Lembre-se dos homens e deste país e tenha a coragem de ser um desses homens,
não permanecendo no governo se
não for digno de exercê-lo."
Alguns anos depois, Arinos fez
mea-culpa: "Éramos como uma
matilha de lobos acuando aquele
bicho [Getúlio] dentro de um alfojo até ele se matar lá dentro. Isso
me desgostou, me deu enjôo. Falar disso é muito difícil".
É curioso lembrar: na véspera
do suicídio, a fina flor do lacerdismo se reunia em casa de d. Maria
do Carmo de Mello Franco Nabuco, irmã do deputado, para estourar champanhe comemorando a
queda iminente do presidente. A
alegria durou pouco.
Por volta das 9h do dia 24, Samuel, que passara a noite no jornal, me telefonou, contando que
Getúlio havia se matado. Foi rápido, não podia falar mais: que eu ligasse o rádio para saber dos detalhes e que não saísse de casa.
A partir daí, as rádios passaram
a tocar música clássica e ler e reler
a carta-testamento de Getúlio,
que, no fim do dia, eu já sabia de
cor. No início, as notícias eram
poucas; depois foi-se sabendo do
povo chorando na rua e da UDN
com o rabo entre as pernas.
Samuel telefonou várias vezes,
sempre rapidamente, e um contínuo do jornal passou à noite para
pegar camisa, aparelho de barbear, essas coisas. Só apareceu em
casa no dia 25, apressado, emocionado e exausto. Tomou um banho, trocou de roupa, pegou um
suéter -isso falando várias vezes
no telefone-, voltou para o jornal e de lá foi para São Borja, a
convite de Alzira, no avião que levava o corpo de Getúlio. Só fui revê-lo dois ou três dias depois.
A vida foi se acalmando -se é
que se pode chamar aqueles tempos de calmos-, e já tínhamos
mais dois móveis no quarto: uma
cadeira e uma mesa com uma máquina de escrever.
Em 8 de dezembro, às 5h30,
acordei e disse a Samuel, que estava escrevendo um artigo: "Acho
que está chegando a hora". Eram
as dores do parto. Elas são ritmadas: começam, por exemplo, de
20 em 20 minutos, depois passam
para de 15 em 15, e assim vão indo.
Eu, marinheira de primeira viagem, olhava no relógio e dizia aflita: "Samuel, vamos embora, está
na hora". Samuel, também aflito e
fumando sem parar, respondia:
"Um minuto só, já estou acabando". Saímos de casa às 6h35, para
o hospital Santa Lúcia, onde
Pinky, nossa primeira filha, nasceu, às 8h25, com 3,5 kg e 52 centímetros, linda e sadia.
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