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O inimigo nš 1 do getulismo
Comunista na juventude e depois líder da direita liberal, Carlos Lacerda foi o tribuno mais aguerrido contra Getúlio
OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO
Carlos Lacerda (1914-1977) foi
mais do que o alvo de um atentado que levou Getúlio Vargas à deposição, seguida do suicídio por
meio do qual o caudilho conseguiu anular a vitória de seus adversários. Como jovem comunista perseguido pelo Estado Novo
(1937-1945), como jornalista liberal que teve parte ativa na derrubada dessa ditadura, como diretor de seu próprio jornal -a "Tribuna da Imprensa"- assestado
contra o ex-ditador convertido
em presidente populista de esquerda (1951-1954) e até como líder da oposição parlamentar a
dois herdeiros do getulismo (Juscelino e Jango), Lacerda encarnou
o inimigo nš 1 de Getúlio.
Seu pai, Mauricio de Lacerda,
deputado federal ligado aos comunistas, foi um símbolo da resistência durante o repressivo governo de Arthur Bernardes (1922-1926). Carlos Frederico Werneck
de Lacerda recebeu esse nome em
homenagem a Karl Marx e Friedrich Engels. Estudante de direito
e aprendiz de jornalista, Lacerda
pertenceu ao Partido Comunista,
do qual foi expulso num episódio
rocambolesco em 1939. Converteu-se ao catolicismo em 1948. Ao
longo dos anos 50, sempre na facção mais aguerrida da UDN, o
partido antigetulista, Lacerda
emergiu como o líder mais promissor da direita liberal. Deputado federal mais votado no Rio de
Janeiro em 1954, foi eleito governador da então Guanabara em
1960. O tribuno a quem se atribuiria a queda de três presidentes
(Getúlio, Jânio e Jango) se preparava para disputar a Presidência
contra Juscelino, em 1965, quando o regime militar sobreveio e
baniu os dois.
Lacerda encarnou a crítica a Getúlio em três níveis nos quais ela
pode ser, para efeitos esquemáticos, dissecada. O primeiro deles é
a crítica ao usurpador de uma revolução democrática, a de 1930,
destinada a moralizar os costumes políticos e modernizar o país.
Pressionado pela tensão internacional entre fascismo e comunismo (e surfando, como se diria hoje, na versão doméstica dessa tensão), Getúlio cancelou ambos os
extremos ao instalar uma ditadura pessoal em 1937. Enquanto
obrigava o capitalismo a concessões sociais, seu "fascismo à brasileira" calou e perseguiu opositores liberais, de esquerda e até mesmo fascistas propriamente ditos.
Agitando o fantasma de Getúlio e
seus herdeiros numa retórica de
"ditadura nunca mais", o antigetulismo não teve dificuldades em
se apropriar dos valores da democracia representativa e liberal, aos
quais nem sempre se mostraria,
na prática, fiel.
O segundo nível é a crítica à corrupção, que na versão do antigetulismo infesta toda a política,
mas se concentra no populismo
de esquerda, no "mar de lama"
em torno da "oligarquia" que desvirtuou a Revolução de 30. A fonte
do populismo, de acordo com essa retórica, é o sentimento de que
os recursos públicos são elásticos
e sua administração pode ser irresponsável, desde que em nome
do bem-estar imediato do povo.
Essas noções favorecem um ambiente de tolerância, propício à
corrupção, nos meios governamentais, e compelem a gastar cada vez mais para suprir uma riqueza que ainda não existe, ou seja, fabricar inflação. Há, na narrativa da direita, um permanente
conluio entre populistas e comunistas, esses dois tipos de demagogo. Os populistas são aproveitadores que buscam o poder pelo
poder -e pelo dinheiro. Os comunistas são calculistas que se
beneficiam dessa aliança para
acumular forças que lhes permitam, um dia, dar o bote e instalar
sua ditadura, não pessoal, como a
de Getúlio, mas totalitária. No discurso da direita, a figura de linguagem predominante é sempre
o paradoxo: os "amigos" do povo
são seus verdadeiros exploradores, os que se apresentam como
seus "libertadores" pretendem escravizá-lo ao Partido.
O terceiro nível da crítica é a
reação de classe. Sem prejuízo do
oportunismo dos demagogos da
escola de Getúlio e do maquiavelismo dos comunistas, até mesmo
a direita percebe que seus adversários cavalgam uma força perigosa e em ascensão, o povo aglutinado nas cidades e organizado
como exército nas fábricas. Esse
povo é visto como ingrato (porque recusa sistematicamente à
UDN o controle do poder central)
e manipulável (quando reconduz
o tirano e seus sucessores ao poder, pelo voto). Somente sua natureza "pacífica" explica que ainda não tenha se rebelado. Para
evitar o desfecho horroroso da
guerra civil, que em nosso caso seria guerra social, sempre temida
dada a enormidade do abismo entre as classes, a direita também fala em "reformas de base" e simpatiza com as veleidades da democracia cristã -da qual Lacerda se
dizia adepto- de suavizar aspectos do capitalismo.
O avô de Lacerda foi ministro
do Supremo Tribunal Federal, e
sua família era muito bem estabelecida em Vassouras (RJ), cidade
imperial, onde seu pai foi prefeito.
A passagem de Carlos pelo comunismo repete a biografia corriqueira na elite dos países subdesenvolvidos, revolucionários na
juventude que se transformam
em conservadores na idade madura. Lacerda mantinha vínculos
com a elite econômica e intelectual de São Paulo e nunca deixou
de cultivar a hierarquia da Igreja
Católica. Visitou longamente os
EUA, país que admirava e do qual
foi acusado pela esquerda e pelos
nacionalistas de ser a ponta-de-lança no Brasil. A reação ao getulismo também comportou uma
dimensão geográfica, na forma de
contra-ataque da elite central
-carioca e paulista- ao grupo
dirigente que irrompeu em 1930.
De um ângulo anacrônico, tomado do ponto de vista de hoje,
Lacerda venceu. O comunismo
ruiu por ser ineficiente como sistema econômico, opressivo como
regime político e odioso como
forma de convivência humana. A
economia de mercado e a democracia representativa são adotadas cada vez mais, pelo mundo
afora, como forma "natural" de
organizar qualquer sociedade desenvolvida, pós-agrária. O estilo
populista de fazer política foi em
grande parte substituído por um
populismo publicitário, mais adequado à sensibilidade de classe
média. E a ênfase na moralidade
pública domina, atualmente mais
do que nunca, um debate político
que se tornou desértico no plano
ideológico -ele foi dos primeiros, no ambiente nacional, a argumentar que as "ideologias" estavam superadas.
Nada disso exime Lacerda de ter
atentado seguidas vezes contra a
ordem constitucional e democrática: contra a posse de Getúlio em
1951, de Juscelino em 1956, de Jango em 1961 -sempre sob o argumento capcioso de que a democracia demandava, para vicejar, a
erradicação da "oligarquia" populista. Lacerda personifica as
tradicionais ambigüidades do liberalismo nos países periféricos, a
contradição entre princípios impessoais e sua aplicação interessada, seletiva, casuística. Nada disso
tampouco o exime de ter sido um
fomentador do golpismo e da intransigência política, a pretexto
de pureza doutrinária, atiçando
um incêndio que terminou por
engolir, junto com sua ambição
desmedida, a própria democracia
instalada em 1945.
É considerado o maior orador
brasileiro do século 20. Introduziu a linguagem coloquial, de extração modernista, na política e
no jornalismo locais. Continua
sendo um caso raro, talvez único
em tão alto grau entre nós, de político com formação humanista e
versado em aptidões ecléticas,
que exorbitavam a administração
pública e a cultura jurídico-parlamentar para incluir a literatura
(que ele praticou, como ficcionista e tradutor), as artes plásticas, o
interesse pela filosofia e a inquietação religiosa.
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