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Era Vargas chegou ao final com as eleições de 1989
ASPÁSIA CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nas pesquisas recentes para
avaliar quem foi a maior liderança
política do Brasil do século 20, o
nome de Vargas apareceu, com
alguma surpresa, em segundo lugar. Em primeiro ficou JK, mais ligado à confiança no Brasil e à promessa de um desenvolvimento
sem conflitos, com democracia e
liberdade para todos. Vargas, ao
contrário, apesar do amor que lhe
devotaram os pobres, graças à legislação trabalhista, e da tragédia
de sua morte, em nome da bandeira nacionalista, deixou também como herança grandes inimigos, identificados com a oposição à ditadura do Estado Novo.
Getúlio era, por temperamento,
cordial e desprendido e não guardava rancores, mas era acima de
tudo retraído, frio, calculista,
pouco efusivo. No fundo, um pessimista, sempre desconfiado das
intenções humanas. Positivista de
formação, nutria contra o regime
democrático, que ele julgava inoperante e irresponsável, uma desconfiança que foi o seu ponto fraco, empanando sua imagem para
as gerações que surgiram no combate à ditadura, alheias à velha
guerra do grande caudilho contra
a aristocrática UDN.
Foi essa a razão pela qual a liderança de Leonel Brizola, herdeiro
do trabalhismo de Vargas e que
voltou ao Brasil em posição triunfante, estiolou-se nas duas últimas
décadas, acumulando duras e sucessivas derrotas, tanto no plano
nacional quanto estadual, sobrepujado pela bandeira mais atual
do jovem, inovador, mas ainda
inexperiente PT.
Essa "herança maldita" do autoritarismo há de distorcer, temporariamente, o julgamento de seu
papel decisivo na construção institucional do Estado e da nacionalidade brasileira. E de seu tremendo sentido de marketing cultural,
para promover a inclusão social
aliada a uma identidade coletiva.
Podemos decretar o fim da era
Vargas nas eleições de 1989 para a
Presidência da República, nas
quais o grande favorito era Leonel
Brizola, derrotado no primeiro
turno por dois novos personagens, oriundos de um ambiente
político antagônico, mas, visivelmente, pós-Vargas. Collor, sem
raízes, mas representando a modernidade que os herdeiros de
Getúlio se negavam a defender ou
a reconhecer. Lula, falando em
nome de um pós-trabalhismo
pragmático, da classe média recente e dos metalúrgicos do ABC
paulista. Desde então, identificamos uma dura e inelutável trajetória de demolição das instituições da era Vargas no plano econômico e social, apesar da blindagem de proteção sindicalista criada com a Constituição de 1988.
É preciso reconhecer que Vargas foi o grande organizador do
Estado brasileiro e o coordenador
do pacto social que prevaleceu
praticamente intocável durante
mais de 50 anos. No entanto, mais
surpreendente do que sua duração é o tempo que estamos gastando para desconstruir o seu legado, formulando e implantando
uma nova ordem, tão articulada e
coerente quanto a que Getúlio
concebeu sempre buscando o denominador comum, a síntese política quase perfeita das lideranças
e tendências de seu tempo.
Como ninguém, Vargas soube
elaborar e construir, junto com
seus colaboradores, estratégias de
fortalecimento nacional por meio
das mais audaciosas e complexas
costuras de acordos políticos, de
engenharias de governo e de composições regionais, sempre a partir de um enorme pragmatismo
que fez prevalecer a arte do possível sobre a integridade dos princípios estabelecidos. Esse talento
inigualável de inspiração maquiavélica, provido de direção e de rumo, que hoje inexiste entre nós,
deixa o país na orfandade, obrigado a fazer articulações típicas dos
"minipactos", conduzidos por lideranças dinâmicas, mas sem autoridade, mais sociais que políticas, atuando nos frágeis interstícios entre a sociedade e os governos combalidos.
Em estreita comunicação com o
passado de Getúlio Vargas, identificamos hoje a política externa
de alianças fragmentadas, sempre
solitária, e a exaltação e a supremacia do centro político em detrimento de paixões ou ideologias
radicalizadas. Essa opção pelo
"império do meio" cai, muitas vezes, no denominador comum da
mediocridade, tornando nossos
ciclos reformistas lentos e penosos, como vivemos agora, no quadro anárquico de um regime democrático que Vargas tanto desprezou, alimentado por uma indústria eleitoral infiltrada de interesses inconfessáveis e corrosivos.
Sempre foi privatista, e o investimento estatal era a última opção
possível. E quis a ironia do destino que, governando sempre com
dois partidos, o PTB que estava à
sua esquerda tenha se tornado a
direita do líder trabalhista, o presidente Lula.
Aspásia Camargo é socióloga, professora da Fundação Getúlio Vargas.
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