São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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ATLETISMO

Fauja Singh, que começou a correr aos 89, conversa com Deus, instiga ciência e destrói recordes nas maratonas

"Bin Laden" desafia marcas e limite aos 93

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

A piada é repetida em todas as corridas. Ao avistar o senhor de turbante e barba branca volumosa, o espectador mais brincalhão dispara: "Vem aí o Bin Laden".
Fauja Singh não liga. Mantém a passada em ritmo cadenciado, faz um rápido aceno para o público e segue sua toada. "Os torcedores se divertem e também aprendem comigo. Muitos, depois de me verem correndo, animam-se e começam a praticar algum esporte. Sou um exemplo", afirma.
Ele sabe que não conquistou fama e respeito nas provas de rua apenas pelo visual semelhante ao do líder terrorista da Al Qaeda.
Indiano radicado em Londres, o maratonista de 93 anos é um caso raro no esporte. A cada evento que disputa, estraçalha uma marca mundial. Hoje, coleciona mais de 15 recordes para sua faixa etária em diferentes eventos.
No último domingo, escreveu mais um capítulo dessa história. Em Toronto, no Canadá, completou uma meia-maratona (21 km) em 2h30min02s. Um atleta com mais de 90 anos nunca registrou um resultado semelhante.
Mais: a trajetória de Fauja nas competições só começou aos 89 anos, quando a esmagadora maioria dos esportistas já colocou um ponto final na carreira.
Até os 81 anos, ele era fazendeiro em Punjabi, cidade de seu país-natal. Corridas, para ele, não passavam de lembranças remotas.
"Quando eu era jovem, antes de a Segunda Guerra estourar, disputei alguns pequenos eventos contra moradores de vilas próximas à minha. Eu sempre ganhava. Depois disso, me dediquei aos meus filhos e à minha família."
A rotina virou de ponta-cabeça quando a mulher morreu. Sozinho, Fauja aceitou o convite do mais novo de seus quatro filhos e mudou-se para Londres.
Como entende poucas palavras em inglês, enjoou rápido do ramerrão nas TVs. Em um parque próximo da casa em que vive, decidiu retomar a atividade física que executava na juventude.
"Lembro que ele percorria uma volta de pouco mais de 2 km em 15 minutos. Não andava, não bebia água. Corria em um ritmo muito bom. Quando descobri a idade dele, então, fiquei ainda mais surpreso", explica Harminder Singh, que o avistou há cinco anos e virou seu técnico -apesar da semelhança no sobrenome, não têm nenhum parentesco.
Ele acumula também a função de tradutor, em casos como o da entrevista de Fauja à Folha.
Em 2000, seu pupilo completou a primeira maratona, realizada em Londres. Demorou 6h54min para percorrer os 42.195 m. Hoje, já baixou seu recorde na distância para 5h40min.
O segredo da longevidade?
Fauja acredita que é a disciplina. Vegetariano, não bebe nem fuma. Pratica meditação duas vezes ao dia -de manhã e à noite.
E, principalmente, treina como um garoto. Em cada sessão, perfaz de 13 a 19 km na capital inglesa. Seis vezes por semana.
Como comparação, Vanderlei Cordeiro de Lima, 33, medalha de bronze na maratona em Atenas, cumpre uma média de 20 a 30 km em cada prática que realiza.
"Não tenho boa saúde só por causa da dieta. Evito todo tipo de estresse e desejo o bem para todos. Isso ajuda", conta o veterano.
Claro que Singh dedica também alguns créditos ao sobrenatural. Ele costuma rezar antes das provas ("peço para que nada de mal aconteça"). Mas é durante as corridas que as preces rendem os melhores efeitos. "Quando sinto dificuldades, converso com Deus. Rogo para que me mostre o melhor caminho a seguir", ensina.
Suas performances surpreendem quem lida com o corpo humano no dia-a-dia. "Correr maratonas é um procedimento complicado pelo impacto sobre o sistema locomotor e o estresse térmico que se tolera. Com a idade avançada, é ainda mais difícil", analisa Cláudio Gil Araújo, especialista medicina esportiva.
O mais impressionante é que Fauja não aparenta ser um homem saudável. Seus parcos 51 kg desaparecem no esqueleto de 1,82 m. Nada que o incomode. Orgulho dos 13 netos e cinco bisnetos, só quer mais recordes no futuro. "Não sei se chegarei aos 100 anos. Se chegar, estarei correndo."

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