|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
No interior de São Paulo, pequenos Ayrtons correm de kart, sonham com a F-1 e põem em prática o plano de repetir a trajetória do ídolo de seus pais
A desconhecida saga de Ayrton Senna da Silva, um menino de capacete
FÁBIO SEIXAS
ENVIADO ESPECIAL A IMOLA
Ayrton Senna da Silva bate os
pés e grita: "Quero fazer xixi!".
O pai diz que não é hora. "Agora
não. Faltam só dez minutos pra
fechar a pista. Vai treinar, vai."
O menino de seis anos obedece.
Senta no kart número 15 com motor afinado pelo preparador Tchê.
Bate na viseira. Acelera.
Não é mais uma retrospectiva
sobre a carreira do tricampeão da
F-1 às vésperas dos dez anos de
sua morte, em Imola. A cena
aconteceu na última quarta, dia
21, em Itu, a 103 km de São Paulo.
"Deus lhe deu o dom de pilotar.
Ele vai substituir o Ayrton Senna,
com certeza", diz José Nilton da
Silva, 54, empresário de Paulínia,
próximo a Itu, fanático por automobilismo. "Quando ele morreu,
prometi que, se tivesse um filho
homem, daria o nome dele."
O filho de José Nilton, Ayrton
Senna da Silva, nasceu em Campinas em 1º de dezembro de 1997.
Não é o único. Promessa idêntica foi feita no norte do Estado.
Um ano e meio antes, em 10 de
julho de 1996, em São José do Rio
Preto, a 440 km da capital, nasceu
Ayrton Senna da Silva. "Quando
aconteceu o acidente, imaginei
que, se casasse e Deus me desse
um filho, seu nome seria Ayrton
Senna", diz Aparecido da Silva,
53, comerciante de Sertãozinho.
Em comum, além de nome e sobrenome, os meninos respondem
pelo apelido de Senninha, personagem lançado pelo piloto e que
hoje é marca do Instituto Ayrton
Senna. Pilotam karts. E, na visão
dos pais, são futuros heróis da F-1.
Para eles, é só questão de tempo.
O Senninha mais velho, que vive
em Sertãozinho, começou aos
cinco, em um torneio regional.
Em 2003, aos sete, foi o terceiro na
categoria cadete -até 12 anos.
"Ele tem talento, ele sabe as manhas. É como o Senna. Na escola,
corre o tempo todo. Até o cabelo
dele é ruim, igualzinho ao do
campeão", afirma Aparecido.
O mais novo começou no kart
aos quatro e já conseguiu resultados. Em 2003, venceu em Itu na
categoria baby (4 a 7 anos). Neste
ano, está também na cadete.
"Tudo indica que o Senninha
vai ser igual ao Senna. A primeira
palavra que falou não foi papai
nem mamãe. Foi carro", declara a
mãe, Rose Pinto, que, como o pai,
só chama o filho de Senninha.
Os dois têm rotinas pouco comuns para crianças de sua idade.
Na última quarta, feriado e garoa. Pouco antes das 8h, um Gol
todo adesivado com fotos do garoto chega ao kartódromo de Itu.
"Com a gente não tem essa de
feriado, não. Aproveitamos para
treinar", proclama José Nilton.
Segundo ele, um grupo de empresários ofereceu R$ 350 mil no
ano passado por um contrato de
longo prazo, recusado. Logo depois, fechou patrocínio com uma
rede de postos de gasolina da região. A empresa paga R$ 25 mil
por mês. "Coloco R$ 5.000 na
poupança do Senninha e uso o
resto para investir nele", explica.
O próximo passo, de acordo
com José Nilton, é comprar um
microônibus e seguir o rumo do
colega de Sertãozinho, que promove na região de Ribeirão Preto
o evento "Senna Super Show".
A variedade de atrações é grande. Todas idealizadas pelo pai.
"A gente vai para as cidades da
região, e o Senninha faz sucesso.
Ele leva as crianças pra andar de
minibuggy, anda só em duas rodas, dá cavalo de pau, corre de ré...
Agora, nós vamos começar a ensaiar salto sobre rampa e a passagem por uma barreira de fogo",
conta Aparecido, que não revela
quanto recebe das prefeituras pelos shows -só ressalta que são
arrecadados alimentos e roupas.
Especialistas criticam a postura
dos pais de igualar os filhos a um
ídolo do país, campeão da F-1.
"Dar aos filhos um nome famoso é até comum. O problema é
transferir para os filhos um sonho
deles. Se, até agora, os meninos
respondem bem, isso não significa que serão campeões. Se eles
não conseguirem, podem virar
adultos frustrados", diz a pedagoga Maria Angela Carneiro, do Núcleo de Cultura, Estudos e Pesquisas do Brincar da PUC-SP.
Para o psicanalista Flávio Carvalho Ferraz, o problema começa
já no nome. "Quando um pai define um nome, mesmo inconscientemente, já está traçando um projeto para a criança. O peso do nome Senna é muito grande. O sentimento de um eventual fracasso,
no futuro, será proporcional."
Na conversa, em Itu, José Nilton
tenta escapar pela tangente.
"Se ele não virar piloto, se ele
decidir ser médico ou engenheiro,
não vou ficar decepcionado. Mas
sei que ele não vai mudar de
idéia", afirma o empresário, cuja
firma presta serviços de limpeza
para a Prefeitura de Paulínia
-cujo prefeito é padrinho e dono
da rede que paga o menino.
No material promocional da
criança, porém, o discurso é diferente: "É possível nascer um novo
Ayrton Senna da Silva? A resposta
está sendo dada (...) O clone do
tricampeão mundial iniciou sua
carreira em janeiro de 2002".
O uso da marca Ayrton Senna
não parece ser problema. Respaldado pelo nome do filho, José Nilton já abriu a Ayrton Senna Competições Automobilísticas Ltda.
Em Sertãozinho, Aparecido comanda a Asenna, loja de lingerie.
Falta as crianças falarem.
O de Sertãozinho conversou pelo telefone com a reportagem.
"Vou ser piloto, quero isso da vida. Quero cobrir a vaga que o Senna deixou na F-1", declarou.
Em Itu, o menino que vive em
Paulínia sentou-se numa mureta
da pista e desandou a falar.
"Quando crescer, quero ser piloto
de F-1. Vou chegar lá daqui a 12
anos e vou ser 14 vezes campeão.
Já capotei aqui e rezo todo dia para que Deus me proteja para que
eu nunca me machuque no kart."
Texto Anterior: Painel FC Próximo Texto: Memória: Tricampeão só ganhou primeiro kart aos 9 anos Índice
|