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Entrevista - João Havelange
Maior cartola da história diz que salvou até preso político
Aos 92, presidente de honra da Fifa revela bastidores da bola e da política 30 anos após sua 1ª Copa, em 1978
Ele não é John Lennon, mas diz ter imaginado um
mundo melhor. ""Se a ONU fosse como a Fifa, não
viveríamos o que estamos vivendo. Não há repartição de riqueza, não eliminam a tristeza no
mundo, me cortou o coração ver crianças abandonadas no
mundo." João Havelange se orgulha de ter expandido a Fifa.
"Quando estive lá, eram 186 países. Fui a todos pelo menos
três vezes. Nenhum político fez isso. Se tivessem feito, o mundo não estava como está", gaba-se o dirigente.
RODRIGO BUENO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
João Havelange, 92, fala de
Copas, desde a de 1958 até algumas ""armadas" e a de 2014.
FOLHA - Qual é seu maior orgulho?
JOÃO HAVELANGE - Dar ao Brasil
a Copa de 58, que a era o que
mais o povo do Brasil desejava.
Perdemos em 30, 34, 38, 50 e
54. Ganhamos em 58 e 62, perdi
em 66, não me ausentei, e ganhamos a de 70. Em 74, fui eleito [Fifa]. Era demais ser eleito e
ganhar a Copa, cortaram-me
todo o capim embaixo dos pés.
FOLHA - O Brasil foi prejudicado na
Copa-74? Houve armação na Copa?
HAVELANGE - Em 66, o Brasil tinha praticamente o mesmo time de 62. Quem era o presidente da Fifa? Sir Stanley Rous, inglês. Onde era a Copa? Inglaterra. Nos meus três jogos, com
Portugal, Hungria e Bulgária,
tinham 3 árbitros e 6 bandeirinhas. Sete eram ingleses e dois
alemães. Acha que foi para quê?
Acabar com meu time. Acabaram. Pelé foi machucado. Em
uma homenagem depois, estava Stanley Rous. Me estendeu a
mão e não o cumprimentei. Ele
disse "o que você tem?". Eu disse "faça um exame de consciência, você tem a resposta". A Alemanha jogou com o Uruguai, e
o árbitro era inglês. A Argentina jogou com a Inglaterra, e o
árbitro era alemão. Qual foi a final? Inglaterra e Alemanha.
Por que só tinha árbitro alemão
e inglês nos meus jogos? Em 74,
na Alemanha, também. O senhor não acha estranho? E te
pergunto: a Inglaterra voltou a
ser campeã ou ganhou alguma
coisa? Não, então pronto.
FOLHA - O senhor afirma mesmo
então que houve interferências a favor dos times da casa em 1966 e 74?
HAVELANGE - Exatamente.
FOLHA - Nos títulos que perdeu...
HAVELANGE - Fui à Alemanha
[1974], acabava de ser eleito
[Fifa], faço um jogo Holanda x
Brasil. A Holanda vinha com
problema de petróleo, sem petróleo porque tinha subido
muito, e andavam de bicicleta.
Nunca me esqueço. Quem tinha ido regularizar essa situação foi o [Henry] Kissinger [diplomata americano de grande
atuação nos anos 60 e 70]. Ele
chegou ao estádio para ver Brasil x Holanda, e o Stanley Rous
me botou o [árbitro Kurt]
Tschenscher, da Alemanha,
que já tinha 50 anos e apitou o
último jogo da carreira. E me
jogou para córner. Perdi de 2 a
0. Suspenderam meu central
[Luis Pereira, expulso contra a
Holanda] para a disputa de terceiro com a Polônia. Puseram
um árbitro [Aurelio Angonese,
da Itália], um jogador meu pegou a bola no meio, foi agarrado
na camisa quando entrava na
área para fazer o gol. Apitou, fez
a barreira e perdi de 1 a 0.
FOLHA - E em 1978, a Copa na Argentina do presidente Videla? Houve armação nesse Mundial?
HAVELANGE - Nada disso. Se você veio tratar de política, não
aceito. Quando cheguei à Fifa,
quem decidiu que a Copa ia ser
na Argentina não fui eu nem o
Comitê Executivo. Foi o Congresso [da Fifa], e você não pode mudar uma decisão do Congresso. Pode falar o que quiser.
Eu só apertei o governo anterior, que era da senhora do Perón [Isabelita]. Fui a ela, depois
ela caiu. Faltavam dois anos para a Copa. Fui ver o presidente
Videla, não o conhecia. Ele me
disse: "Senhor Havelange, não
vou lhe dar a melhor Copa, mas
vou lhe dar uma das melhores,
pode estar certo". E fez tudo.
FOLHA - O senhor era conhecido de
Paulo Paranaguá [cujo filho homônimo acabou preso na Argentina como um militante de esquerda]?
HAVELANGE - Sim, muito, ele
faleceu. A senhora dele ainda é
viva, era filha do ex-presidente
do Fluminense Antônio Leite.
Ele [Paulo pai] foi embaixador
no Kuait. Eles tinham um filho
que se meteu naquela questão
de revolução na Argentina. O
Antônio Leite, pai da Glorinha,
chegou ao meu escritório e disse: "O meu neto foi preso na Argentina, a Glorinha já foi lá não
sei quantas vezes e não consegue falar com ele, ela está com
medo". Eu disse: "Faço futebol,
sou administrador de uma entidade, não sou político". Ele:
"O senhor faz isso para mim. É
meu neto. E começou a chorar". Isso me doeu muito, e disse: "Estou saindo para o Oriente. Quando voltar, em vez de vir
ao Brasil, desço em Lima e vou
a Buenos Aires". Assim fiz.
FOLHA - E aí negociou a libertação
do Paulo [como diz Pablo Llonto, autor do livro "A Vergonha de Todos",
sobre a Copa de 1978]?
HAVELANGE - Cheguei e pedi audiência com o presidente Videla. Expliquei a ele e disse: "Se o
senhor acha que estou me intrometendo, ponha-me para
fora, não me atenda, e eu o respeitarei da mesma maneira".
Chamou o general Viola por telefone e disse: "O doutor Havelange vai aí lhe falar e veja tudo
o que pode fazer". Saí do gabinete e fui ao general Viola, décimo andar. O general me abre a
porta do elevador. Entrei e falei
do que se tratava. Chamou o coronel. "Verifica o caso desse rapaz e me ponha a par." E assim
o fez. Era novembro, e disse ao
Antônio Leite o que tinha feito.
A Glorinha pensava que o filho
já estava... No princípio de janeiro, saí de Concorde para Paris. Quando ia fechar a porta do
avião, entrou um sujeito da Polícia Federal e me disse: "Doutor Havelange, acabaram de telefonar de Buenos Aires. Mandaram avisar que a pessoa que o
senhor pediu já está em Buenos
Aires e amanhã já estará em um
avião da Air France, como o senhor determinou, a destino de
Paris. Esse rapaz vive hoje em
Paris, é o filho de Paranaguá.
FOLHA - Não foi estranha a goleada de 6 a 0 da Argentina em 1978?
HAVELANGE - Não tenho nada a
ver, mas dias antes o Brasil jogou com o Peru. Fui ao vestiário e disse que precisava ganhar
de muito para ter saldo de gols.
Ficaram o tempo passando a
bola: 3 a 0. E não se esqueça: o
time do Peru estava na terceira
Copa, todos tinham mais de 30
anos. Não faziam tecnicamente
um jogo bonito, e eficiência física nenhuma. Quando o Brasil
jogou com a Argentina, fui ao
vestiário e disse que precisávamos ganhar o jogo para sermos
campeões. Disseram-me que
iam jogar pelo empate. Lembre-se de que o Rivellino não
entrou em campo. Empatamos.
O Peru jogou e, se o senhor vir o
filme do jogo, com dez minutos
botou uma na trave. Se entra,
tinha ganho de 10 a 0. O time do
Peru não tinha perna para jogar. Todo mundo agora só fala
em política, nisso e naquilo, e
não é nada disso. A Argentina
tinha um bom time, ganhou da
Holanda, e vou lhe dizer mais: a
Holanda se portou muito mal
naquela Copa. Era a minha primeira na presidência, e a Fifa
fazia um jantar onde entregava
prêmios aos quatro times finalistas. Houve o banquete e, às
21h, cheguei com minha senhora. O presidente já estava lá,
22h, 22h30, e nada da Holanda
chegar. Estavam lá o time do
Brasil, da Itália, da Argentina, e
a Holanda chegou às 23h, o time de macacão. Disse ao presidente: "Se o senhor quiser, não
haverá jantar, o senhor pode se
levantar que sairei com a minha senhora". Ele: "Não, eu espero até o final". Nunca mais
houve jantar na minha administração. Time que ganhava
subia na tribuna, eu dava a medalha e ia embora. Não vou a
campo, você nunca sabe a reação do público. Na tribuna, ninguém mexe com você.
FOLHA - O senhor está bastante
envolvido na campanha do Rio para
ter a Olimpíada-2016, não?
HAVELANGE - Não estou envolvido, é que sou membro do
COI, decano. Estou lá por eleição há 45 anos. E naturalmente
me dou com a maioria dos
membros, são 115. Mudou muita gente, mas ainda tenho uma
penetração e espero trabalhar
pelo Rio, que pode trazer os Jogos para o Brasil. Estarei feliz se
isso acontecer e, se Deus me
der a vida no dia dos Jogos, terei exatamente cem anos.
FOLHA - Acha que sua influência
pesará a favor do Rio?
HAVELANGE - É mais difícil. Primeiro, tem país da Europa [Espanha/Madri], da Ásia [Japão/
Tóquio] e do continente americano [EUA/Chicago]. Mandarei carta aos 115 [membros].
Tenho todos os votos dos árabes, são meus amigos, da África,
alguns da Ásia e da Europa. Vamos ver o que posso fazer.
FOLHA - E a Copa-2014 no Brasil? O
país pode fazer uma boa Copa?
HAVELANGE - Sem dúvida, e vai
fazer. O Ricardo [Teixeira, presidente do comitê organizador
da Copa-2014] vai fazer algo de
formidável. Escolheu como
presidente do conselho administrador o Carlos Langoni, que
foi presidente do Banco Central, sujeito inteligente. Já tem
firmas nos EUA que devem estar interessadas. Pode ter certeza de que vamos ter uma Copa excepcional. Hoje [segunda]
estive com o presidente [Luiz
Inácio Lula da Silva], e ele me
disse: "Tudo o que for possível,
nós vamos fazer. Vamos rever
todos os aeroportos, tudo o que
for necessário para que a Copa
seja um primor. E os Jogos
também, se os recebermos".
FOLHA - O que acha da administração de Blatter, seu sucessor na Fifa?
HAVELANGE - Ele deu continuidade. Como tem recursos, também fez projetos. Fez o Goal.
Em todas as federações, fez
uma sede e um campo. Quem
não precisava, ganhou outra
coisa. E fez outras coisas fantásticas. Fiz meu presidente. O
[Lennart] Johansson [ex-presidente da Uefa] não gostou. Foi
eleito, reeleito e será reeleito
até 2015. Aí terá 80 anos e, se
não quiser mais, disse a ele:
"Difícil na vida não é chegar, é
saber sair. Tem que sair bem".
FOLHA - O que acha de a Fifa ser
presidida por um ex-jogador, como
Beckenbauer ou Platini?
HAVELANGE - Se for, primeiro
vai ser presidida pelo Ricardo
[Teixeira, presidente da CBF].
Depois, vai ser o Platini. Já não
estarei vivo. Ele é excepcional,
é inteligente, tive admiração
por esse rapaz na Copa de 98.
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