São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004 |
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CINEMA Drauzio Varella ("Estação Carandiru") e Paulo Sacramento ("O Prisioneiro da Grade de Ferro") cotejam livro e filme Carandiru das letras olha para o da telona
SILVANA ARANTES A VIOLÊNCIA NO FILME DRAUZIO VARELLA - O que mais me interessou em "O Prisioneiro da Grade de Ferro" foi o filme resistir à tentação de descrever a violência. A violência é uma tentação para o escritor e, imagino, para o diretor de cinema. Quando você descreve o ato violento, garante a atenção do leitor ou do espectador. Mas a violência é um flash, que explode e cega todo mundo. A sensação que ela transmite turva todo o resto que você está interessado em mostrar. O Paulo fugiu disso maravilhosamente bem. Acho que ele estava interessado em mostrar o resto. PAULO SACRAMENTO - Estava interessado em mostrar o que não aparece normalmente. Quis fazer um filme sobre cadeias, porque não conhecia nada sobre elas. O que eu via no jornal e na TV me dava só uma parcela, que eu imaginava ser muito pequena, daquilo -rebelião e fugas. Eu pensava: os presos não se rebelam e são capturados todos os dias. Algo acontece além desses momentos extraordinários, de explosão. Eu queria saber como era o dia-a-dia. A VIOLÊNCIA NA CADEIA SACRAMENTO - No dia-a-dia deles, a questão da violência não é tão forte. Eles não acordam com medo. Nas fotos dos presos mortos [mostradas no filme], metade está com corte de triagem. Ou seja, foram mortos ao entrarem na cadeia, provavelmente no primeiro ou no segundo dia. Já eram jurados de morte, tinham inimigos. A morte foi ali, mas a violência que levou a ela veio daqui de fora. É claro que muitos deles têm um enorme potencial de violência, mas, ali dentro, fica minimizado. VARELLA - A cadeia diminui a violência, porque desaparece a força bruta do relacionamento. Você não viu lá nenhum preso respeitado por ser forte fisicamente. A força física vale na rua. Dentro da cadeia, não, porque, uma hora, você dorme. Na cadeia é preciso haver regras de convívio. E as regras têm de ser muito bem obedecidas. Para serem obedecidas, tem de haver castigos fortes, impostos rapidamente. Não há o intervalo entre condenar e punir. Na cadeia, se você comete um crime de manhã, na hora do almoço está pagando por ele. A ENTREVISTA CORTADA VARELLA - Dei uma entrevista para vocês [Sacramento e sua equipe], longa até, que não foi usada no filme. Era uma discussão teórica sobre a cadeia. Tudo o que os presos [co-autores do filme] me perguntaram respondi. SACRAMENTO - Não quisemos usar a entrevista, porque, na montagem, entendemos que queríamos teorizar menos do que mostrar. Não queríamos as "vozes autorizadas" a falar sobre a cadeia. Não queríamos o autor do livro "Estação Carandiru" falando sobre a cadeia. Queríamos o dr. Drauzio médico. Com certeza, os presos não trocariam o dr. Drauzio médico pelo dr. Drauzio escritor. Imagino que todos os dias havia aquela quantidade de gente e aqueles problemas no seu consultório [no Carandiru]. Mas, quando filmamos, foi muito impressionante, por causa do rapaz com o problema no pescoço [um enorme tumor]. VARELLA - Vocês fizeram a escolha certa ao não teorizar. Tudo o que eu disse o espectador não seria capaz de repetir no dia seguinte. Quem viu a imagem do rapaz com o problema no pescoço vai se lembrar dela daqui a 50 anos. O "CARANDIRU" DE BABENCO SACRAMENTO - Até hoje não vi o filme do Babenco ["Carandiru" (2003), baseado no livro de Varella], porque não queria comparar o meu trabalho com o dele. É claro que ainda vou assisti-lo. Vi todos os filmes dele e gosto muito. Mas, enquanto estou dando entrevistas sobre meu filme, não quero falar de outra coisa. Quero falar do meu trabalho. VARELLA - Enquanto eu escrevi "Estação Carandiru", não li nenhum livro de cadeia, nem "Recordações da Casa dos Mortos" [de Fiodor Dostoiévski]. SACRAMENTO - Acredito que Babenco também não tenha visto o meu filme. VARELLA - Não sei se viu. SACRAMENTO - O que aconteceu, talvez, é que "Carandiru" foi tão grande [4,6 milhões de espectadores, recorde entre os filmes nacionais] que tudo o que vem depois parece ser subproduto dele. Agora, só posso falar do meu filme. Daqui a alguns anos talvez queira falar dos dois. VARELLA - São duas leituras totalmente diferentes da cadeia, cada uma com o seu interesse. O filme do Babenco é monumental, maravilhoso, feito com um compromisso muito menor de retratar a cadeia do que o seu. Porque a realidade, realmente, o que é? Nada tem significado. Não adianta querer procurar o significado de um filme. O significado é o que você dá a ele, quando o assiste. AS REVELAÇÕES DA CADEIA SACRAMENTO - O que mais me chamou a atenção foi a criatividade dos presos. Usam a falta de condições como elemento de criação. Não estavam mortos ali dentro. Levavam uma vida o mais interessante possível. O corpo encarcerado, mas a cabeça não. VARELLA - O que mais me fascinou na cadeia foi a abrangência do código penal. Não há nada escrito, mas você sabe se qualquer ato pode ser feito ou não. Posso usar o colarinho da camisa aberto no dia de visita? Pode. O segundo botão da camisa aberto? Não. Aí você pergunta: por que não? Porque está errado. Não existe zona cinzenta entre o certo e o errado. DUAS CONFISSÕES VARELLA - Eu não tinha a dimensão do impacto que o exercício da medicina tem no imaginário humano. Quando comecei a me dar conta disso, fazia uma coisa que hoje tenho até certa vergonha de dizer. Às vezes, eu entrava na cadeia e tinha de ir ao pavilhão 4. Eu inventava um pretexto e ia ao pavilhão 2, atravessava o 5, seguia para o 8 -onde fica a nata da cadeia, os reincidentes-, subia até o quarto andar, entrava pela galeria, dava a volta completa, como se estivesse procurando alguém. Não estava procurando ninguém. Fazia isso só para ter o prazer de andar pela cadeia inteirinha, sozinho, e as pessoas me cumprimentando: "Oi, doutor". "Tudo bem, doutor?" Nunca interpretei isso pessoalmente. Sempre soube que acontecia pelo fato de eu ser médico. É impressionante você conseguir, com o exercício de sua profissão, impor esse respeito. SACRAMENTO - Se tive algum momento de medo, foi durante uns dois minutos, no quarto mês de filmagens. Conforme íamos conquistando a confiança e o afeto dos presos, conquistávamos também a raiva dos funcionários. Eles nos viam muito próximos dos presos e achavam que estávamos dando bola para vagabundos. Um deles, maldosamente, disse: "Vocês continuam andando por aí, sem escolta... Qualquer hora, vão jogar um cobertor em cima de vocês e vocês vão chegar aqui com 40 facadas". Isso não é coisa que se diga para ninguém. Ficamos um olhando para o outro por dois minutos. Mas logo nos lembramos de que isso não tinha absolutamente nada a ver com a realidade que vivíamos ali dentro. O FASCÍNIO DO PÚBLICO VARELLA - O universo da cadeia é mesmo fascinante. O homem aprisionado é um dos limites da condição humana. Quem, em sua fantasia, nunca se imaginou trancado numa cadeia? De outro lado, há uma necessidade de entender o que se passa. Quem são essas pessoas que a gente só vê quando sobem no teto e põem fogo nos colchões? O que fazem? O que pensam? Como sobrevivem? SACRAMENTO - Além da questão filosófica -do limite do aprisionamento-, a cadeia traz a questão da marginalidade. O criminoso é, entre aspas, um ser livre, que não se atém às restrições da lei. É quase como um super-herói. Não é à toa que 50% dos filmes americanos são sobre criminosos. Texto Anterior: Comentário: O erotismo do corpo feminino brutalizado Próximo Texto: Paulo Sacramento: Cineasta estréia em longa com documentário Índice |
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