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COMENTÁRIO
O erotismo do corpo feminino brutalizado
COLUNISTA DA FOLHA
Uma garota espevitada leva
palmadas de um homem
mais velho. Uma mulher de bruços recebe passivamente raquetadas nas nádegas. Duas lindas mulheres se atracam. Duas garotas
jovens se embolam no chão.
Parecem descrições de cenas de
filmes pornôs com toques de sadomasoquismo, mas na verdade
pertencem às duas últimas novelas das oito da Globo. Após os homens de torso nu na trama das sete, a nova aposta no terreno de liberalização de costumes são as cenas de violência erotizada contra
a mulher no horário nobre.
O "produto" foi largamente testado em "Mulheres Apaixonadas" -três das situações no parágrafo anterior aconteceram na
novela de Manoel Carlos- e teve
sua eficiência em termos de audiência novamente confirmada
na última segunda, quando Maria
Clara espancou Laura.
É um truque que se pode classificar, sem medo de soar moralista,
de sujo: a violência atrai gregos e
troianos, mas a violência contra a
mulher tem um quê de erótico capaz de fazer o público mais refratário à novela, o dos homens adultos, grudarem em frente à TV.
Nas sociedades machistas -e o
Brasil é inequivocamente uma delas, das mais hipócritas-, o erotismo heterossexual masculino
adulto compreende doses razoáveis de violência e de desejo de dominação. Uma mulher submetida
a uma força maior, sofrendo algum tipo de dor, dobrando-se a
uma vontade -ui!
Não à toa, a tal preferência anatômica nacional é a indicação exterior, muito pouco disfarçada, de
uma obsessão por um tipo de relação sexual em que algum nível
de resistência a ser vencida quase
sempre está em jogo. Dessa obsessão cuidam a maioria dos filmes
pornográficos dirigidos a homens
heterossexuais, ainda banidos da
sala de estar, mas, pelo jeito, a novela está se encarregando de lidar
com o lado mais leve dessa associação entre corpo feminino brutalizado e erotismo masculino.
O fato de essas cenas terem quase sempre um sabor "justiceiro"
não livram a barra. Pelo contrário, fazem todos na sala -a mamãe, o papai, os meninos e as meninas- acreditarem que algumas
mulheres em algum momento
merecem de fato apanhar.
É um mote sexista conhecidíssimo aquele que diz que o homem
pode não saber por que está batendo, mas a mulher certamente
saberá por que está apanhando.
As cenas de violência contra a
mulher, mesmo quando infligida
por outra mulher, como o foi em
"Celebridade", espertamente são
coreografadas como surras -alguém sempre está punindo alguém por um delito real ou imaginário-, e não como brigas entre
iguais, como no caso das disputas
entre homens.
Para além daquilo que essa nova
"moda" representa em termos de
banalização da violência, o tempero de erotismo que envolve esse
tipo de cena confere significados
que não podem -ou não deveriam- ser tratados com leviandade pelas emissoras nem aceitos
com passividade por telespectadores. Ou seja, quais são as imagens de gênero que se firmam entre as meninas e os meninos
quando a TV que está na sala de
casa, com mamãe e papai assistindo e cada um vibrando a seu modo, mostra mulheres apanhando
a torto e a direito e, o que é pior,
com "razão"?
(BIA ABRAMO)
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