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TELEVISÃO
Adaptação da peça de Tony Kushner, com Al Pacino e Meryl Streep no elenco, será exibida no canal pago HBO
"Angels in America" é um "Dallas" liberal
Divulgação
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A atriz Emma Thompson em cena da série "Angels in America" |
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Há dois tipos de filmes norte-americanos sobre o Vietnã: os do tipo Rambo, que consideram a guerra como um trabalho que teve que ser feito e foi apenas mal-acabado; e os de denúncia, que mostram como adolescentes despreparados massacraram uma população indefesa.
Não há nenhum que eu conheça,
no entanto, que apresente um fato
histórico simples: os Estados Unidos perderam essa guerra.
Seja na denúncia, seja no ufanismo, os Estados Unidos, maiores
produtores de entretenimento do
mundo, produzem fábulas sobre
heróis. Estejam eles em Roma antiga ou perdidos no espaço, sempre os valores familiares prevalecerão, a confiança na liberdade, a
destruição dos maus. Um maniqueísmo que encanta o mundo há
tanto tempo que parece irreversível sua influência.
"Angels in America" surgiu como um acerto de contas interno
contra a hipocrisia da era Reagan,
que criminosamente tentou varrer para baixo do tapete a primeira fase da epidemia de Aids, o que
a fez se alastrar pelo mundo. Escrita com coragem por Tony
Kushner, gay, socialista e judeu, a
peça resgatou apaixonadamente
o teatro de texto, em uma fase que
ele cedia ao espetáculo, e ganhou
todos os prêmios possíveis.
Recentemente a peça conheceu
sua definitiva consagração em sua
adaptação para a TV, que a HBO
transmitiu para 30 milhões de lares na Terra dos Bravos.
Com o homossexualismo necessitando de um esforço menor
para ser aceito, graças a sitcoms
conservadores com protagonistas
gays, os norte-americanos médios se enterneceram com os anjos e os desvalidos, como se não
houvessem entrado em um novo
ciclo de puritanismo e discriminação.
O grande mérito, portanto, de
"Angels in America" hoje é o de
demostrar que os gays podem ser
tão convencionais, tão enternecedoramente comuns em seus conflitos amorosos e existenciais
quanto os heterossexuais que os
descriminam.
Agora é privilégio nosso, americanos mais ao sul, poder também
ver esses anjos. A qualidade técnica da série é inquestionável, com
seu roteiro simples e fluente, e
diálogos ágeis e bem-humorados
que disfarçam a pieguice verborrágica desse melodrama.
Al Pacino está fascinantemente
abjeto no papel do gay conservador; Marie-Louise Parker faz,
com uma verdade cativante, a dona-de-casa mórmon viciada em
Valium para enfrentar o homossexualismo do marido; e Emma
Thompson faz a enfermeira com
um perfeito sotaque americano e
um talento muito além do necessário para o papel.
Mas é um pouco constrangedor
constatar que a denúncia, mediana e convencional, da hipocrisia
do conservadorismo norte-americano acabou se tornando mais
um produto de auto-exaltação
daqueles que se arrogam o direito
de se nomear com o nome do
continente.
O toque de Midas do marketing
faz com que essa guerra perdida
contra a Aids e a discriminação
acabe soando exatamente como o
seriado "Dallas", da era Reagan.
Que os anjos salvem a América do
Norte, porque ela precisa muito.
Em todo caso, os produtores estadunidenses podem contar com
nosso ávido e subserviente apetite
pelo sonho americano.
Angels in America
Quando: estréia dia 9, às 21h, no HBO
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