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Crítica/"A Arte de Produzir Efeito sem Causa"
Literatura de Mutarelli fica à altura de história trash
Autor descreve protagonista paranóico em livro que lembra gibi sem desenhos
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
N
ão vejo melhor modo
de resenhar "A Arte de
Produzir Efeito sem
Causa", de Lourenço Mutarelli,
do que contar por alto o
seu enredo.
Numa primeira parte da narrativa, o pacato protagonista,
que porta o nome de Júnior,
abandona a casa, a mulher, o filho e o emprego na fábrica de
embalagens de autopeças. Muda-se então para o apê do pai,
velho de bom coração, que tem
um caso com a vizinha e aluga o
segundo quarto do imóvel para
uma estudante de artes.
Júnior se instala no sofá da
sala e lá dorme, deprimido, boa
parte do dia. Na outra parte,
gostaria de olhar a estudante
nua por um buraquinho que
lá havia.
Se isso pareceu bobo, esperem para saber o motivo da
brusca mudança e depressão de
Júnior: o pobre descobrira que
sua mulher havia dormido com
o amiguinho do filho. E também com o pai do amiguinho do
filho, o qual, flagrando o ilícito,
exigiu a parte que lhe era devida para não divulgá-lo.
E há mais: sabem quem era o
pai do amiguinho do filho? Ninguém menos que um amigo fiel
de infância, que também calhava de ser seu patrão na fábrica.
Neste ponto, se alguém deixasse de lado o livro, não seria eu a
condená-lo por impaciência.
Mas há ainda uma segunda
parte, na qual Júnior dá sinais
de uma progressiva paranóia.
Ela se precipita com a chegada,
via sedex, de pacotes sem nome
de remetente. Entre outros objetos, trazem um recorte de jornal de época que noticiava o caso em que William Burroughs,
cultuado autor da beat generation, havia matado a própria
mulher com um tiro de pistola
ao errar o copo sobre a sua cabeça. Nada muito criminoso:
apenas brincava, bêbado, de
Guilherme Tell.
Em outro pacote, ganha o
DVD do filme de David Cronenberg inspirado em "Naked
Lunch", do mesmo Burroughs,
além de recortes nos quais defende a sua velha tese de que a
linguagem é um vírus. Quanto a
nós, atenção! Não devemos
perder os signos de cultura
underground disseminados na
narrativa.
Somados os pacotes à tentação da estudante (com quem
divide um lanche, uma pizza e
um baseado), mais os porres
solitários de conhaque, Júnior
dá de perceber estranhas conexões nos recortes. Passa daí a
desenhar combinações com as
suas letras, enquanto vai ficando afásico.
Desconfiado dessas esquisitices, o pai resolve dar uma espiada nos papéis que o filho rabisca e descobre que ele preenche páginas com uma única frase. Embora nada se diga no livro, não é de duvidar que também tenham vindo vários outros DVDs, entre eles, "O Iluminado", de Stanley Kubrick. O
certo é que, preocupado, o bom
pai o leva a um médico, que suspeita de neurocisticercose, isto
é, tênia nos miolos.
Para ajudá-lo a deixar a bebida e as alucinações, o pai resolve lhe dar um choque de realidade e o leva a visitar o irmão,
preso por tráfico de drogas.
Mas tráfico não é problema para o irmão, e sim a suspeita de
que a mãe, metida com demônios, entregara a eles a sua cabeça. E não é que Júnior acha
que a mãe, já morta, fez o mesmo com ele?
Aliás, Júnior suspeita que o
demônio possuiu o pai e a estudante, trocando-os por fantasmas que querem matá-lo. Conseguirá ele matá-los antes
disso?
O que dizer mais? Fechos alternativos: 1) Que a literatura
de Mutarelli faz jus à história
"trash" que conta? 2) Que o livro é um gibi sem desenho? 3)
Que o título é correto? Sem dar
causa a nada, ainda ganhou
uma resenha como efeito.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Unicamp
A ARTE DE PRODUZIR EFEITO
SEM CAUSA
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (208 págs.)
Avaliação: ruim
NA INTERNET
www.folha.com.br/082132
leia trecho do livro
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