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Comida
Palco & fogão
JANAINA FIDALGO
LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL
Vera é uma chef cinqüentona
e meio implicante. Recusa-se a
servir filé bem passado (ou
"carne esturricada", como ela
pragueja), implica com os vegetarianos ("gosto de gente que
vem aqui para comer; eles vêm
se alimentar") e vive em pé de
guerra com o filho, que abandonou o cinema para ganhar dinheiro como publicitário.
Andrea é uma chef trintona,
mãe de dois, ainda não tão intransigente, que deu ares modernos aos clássicos judaicos
em um restaurante no bairro
paulistano de Higienópolis.
A convite da Folha, elas se
encontraram duas vezes nos
últimos dias. Por cerca de duas
horas, Andrea Kaufmann encarnou Vera, personagem da
peça "A Reserva", que estréia
neste sábado, em São Paulo.
Depois, foi a vez de a titular do
papel, Irene Ravache, arriscar-se, em plena hora do almoço,
na cozinha do restaurante AK
Delicatessen, de Andrea.
Atriz amadora na época da
faculdade, a chef foi desafiada a
improvisar uma cena curta depois de ler o texto. Antes de
atuar, quis saber mais sobre
Vera para "compor" a personagem. "Ela não tem muito jogo
de cintura", explica Irene. "O
restaurante dela vai bem?",
questiona Andrea. "Esta é que
é a pergunta. Até um determinado momento", conta a atriz.
A conversa vai virando e toma o rumo da cozinha. Irene
aponta seus pratos preferidos
no cardápio do AK, fala do neto
indiferente a seu brigadeiro.
Quando Andrea comenta a inapetência do filho, a diretora da
peça, Regina Galdino, interrompe a prosa e traz o foco de
volta ao palco: "Então... Eu vou
explicar o que é a cena. Grande
momento, hein?".
Sem papelzinho
Da primeira fileira, Irene
acompanha a leitura do texto.
"Ela está melhor do que eu. A
Regina é completamente louca.
Fica exigindo muito dela!"
Texto lido, é hora de ensaiar
as marcações de cena. "Regina,
você acha que ela está entendendo tudo o que você tá pedindo?", provoca Irene.
Não só entende como ainda
dispensa a cola. "Ó, eu tô indo
sem papelzinho...", gaba-se Andrea, da coxia. "Nooossa! Qualquer coisa eu sopro para você",
apoia Irene. "Andrea, merda!",
incentiva a diretora.
Começa a cena, e a atriz por
um dia insere um "caco" aqui,
faz uma adaptação acolá e arranca risos da "platéia". O mix
de castanhas e frutas secas de
um dos diálogos logo ganha um
aposto: "Uma delícia, vai te deixar nutrido o vôo inteiro", improvisa a Vera de ocasião, dirigindo-se ao "filho", o ator
Evandro Soldatelli -sete anos
mais velho do que ela.
Num trecho mais adiante, a
nora do ramo gastronômico vira "do "métier'", em ajuste
aprovado pela Vera titular.
"Acho que vou adotar o "métier", adorei", diverte-se Irene.
Com a boca ainda seca "de
nervoso", a chef descobre que a
diretora lhe reservou um segundo desafio: uma cena maior
e mais dramática. "Ai, Regina!",
compadece-se Irene. "Lógico,
Irene. Depois ela vai lá e te dá
uma comida supercomplicada
e vai parecer que teatro é fácil",
justifica a diretora.
Andrea lê os diálogos, mas a
carga emocional não satisfaz a
diretora: "Pode ficar mais brava
com ele [o filho], viu?". Imediatamente ela atende. Aumenta o
volume da voz, muda a entonação e enfia um xingamento não
previsto no texto: "Zeca, não tô
te pedindo nada, seu folgado!".
A estréia fictícia acaba, e Andrea neste momento parece se
sentir mais à vontade no palco:
"Agora eu não saio mais também", brinca. Mas faz uma dura
autocrítica: "No começo, deu
aquela agonia. Eu estava nervosa. É difícil passar credibilidade. Eu ficava rindo. Não tenho
esta veia dramática. Faltou entrar mais na personagem".
Irene discorda: "Ela chegou
aqui, pegou o texto e fez. O que
vocês estão pensando? Tem
muito profissional que vacila".
Chef Irene
Quatro dias depois, na cozinha do AK Delicatessen, Irene
chega para a revanche. Brincos,
anéis e relógio ficam do lado de
fora, mas o escarpin garante a
elegância à frente do fogão.
Sem a figura da diretora, o algoz agora é a reportagem, que
dá à atriz a tarefa de preparar
uma receita, do início ao fim.
Andrea sugere um creme de
lentilhas rosas com saladinha
de pepino e coalhada, novidade
do cardápio de inverno da casa.
Andrea dá indícios de que vai
facilitar, assumindo parte do
preparo do prato. "Advertida",
conforma-se e passa às instruções: "Irene, vamos começar
como se começa toda receita.
Cortando uma cebolinha...".
Após a demonstração da técnica profissional do corte, mais
complexa do que a caseira, Irene, talvez temerosa, pergunta:
"Vocês nunca usam trituradores?". Parece um presságio.
Pouco depois, ela se machuca.
"Ó, o primeiro corte do dedo!"
"Pega lá uma camisinha de
dedo", pede Andrea a um funcionário, sem assombro. "Não
tô encostando [o dedo ferido]
na comida, não, viu, gente?"
Band-aid na mão, a atriz tempera o caldo em que a lentilha
será cozida. Já é mais de meio-dia, e os pedidos começam a
chegar. As atenções da chef
agora dividem-se entre a clientela e a visitante. "Ela deve estar dizendo: onde é que eu me
meti!", cochicha Irene, de olho
"naquele pãozinho" do couvert.
Creme e acompanhamento
prontos, Andrea orienta a montagem e a finalização. "Tô orgulhosa, tá bem gostoso", experimenta Irene.
"Atrapalhamos
muito? Tá marchando? Marcha e sai?", pergunta, já inteirada do termo usado pelos chefs
para cantar à equipe da cozinha
os pedidos vindos do salão.
E aí, Andrea, como se saiu a
chef por um dia? "Ela é bem
aplicada e tem uma boa mão. Só
usou pouco sal." A atriz brinca:
"É que cozinho para gente velha, com pressão alta".
Antes de se despedir, avisa
aos amigos de cozinha: "Ó, então amanhã, eu tô aqui, hein?".
A RESERVA
Quando: estréia neste sábado;
sex., às 21h30; sáb., às 21h; dom.,
às 18h; até 31/8
Onde: teatro Cosipa Cultura (av. do Café, 277, Jabaquara, tel. 0/xx/11/5070-7018); classificação 12 anos
Quanto: R$ 40 (sex.) e R$ 50 (sáb. e
dom.)
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