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"Cloaca", obra do belga Wim Delvoye exposta na França, imita a digestão e produz excrementos
Comer, beber, fazer arte
FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE LYON
"A máquina fez cocô, papai!",
exclamou a pequena Claire, 4,
apontando um excremento ainda
fresco, disposto sobre uma esteira
rolante. Um ouvinte desavisado
poderia pensar que a assertiva saíra da infinita imaginação infantil.
Claire fizera, no entanto, uma
descrição sumária e objetiva da
obra maior do artista belga Wim
Delvoye, 38, exposta atualmente
no Museu de Arte Contemporânea de Lyon, na França.
"Cloaca" é uma complexa máquina que reproduz o processo
digestivo humano. Composta de
grandes recipientes de vidro interligados em sequência, essa aparelhagem de 12 metros de comprimento, mantida na temperatura
média do corpo humano de 37C
e totalmente informatizada, funciona à base de uma engenhosa
química de líquidos biológicos e
catalisadores, suco pancreático
sintético, enzimas de laboratório,
ácidos reguladores do nível de pH
e cerca de 400 bactérias de diferentes famílias.
À medida que a digestão avança, no tempo real de uma digestão
humana, o líquido inicial, rarefeito e de tonalidade clara, vai se tornando denso e de cor acastanhada. A clonagem é fiel até a derradeira etapa. Ao final de sua digestão, por meio de um tubo vertical
encerrado numa câmara de vidro,
"Cloaca" defeca suas fezes, de
aparência e consistência idênticas
à excreção humana.
Para digerir, é necessário, obviamente, se alimentar. No museu
francês, a máquina é alimentada
duas vezes ao dia pelos vigias da
exposição. Seu modesto desjejum
é servido às 10h55, hora em que
tritura no seu bocal um croissant
e meio. Às 16h30, o cardápio é
bem mais generoso. Os organizadores da exposição aproveitaram
a reputação gastronômica de
Lyon e convidaram renomados
chefs locais para ajudar a satisfazer o apetite da máquina. No último dia 26, o chef Michel Troigros
lhe preparou um saboroso filé de
dourado com arroz koshi-hikari.
Aos interessados em não perder
seu momento mais íntimo e escatológico, na sua estada francesa a
máquina foi programada para defecar às 14h30. Sua digestão raramente apresenta problemas, mas,
em Lyon, ela sofreu numa tarde
uma "leve diarréia", conta Sherezade, uma das vigias do museu.
Para Wim Delvoye, seu criador,
"Cloaca" é uma metáfora política
e artística. "Concebi "Cloaca" como a obra de arte mais cosmopolita que se poderia imaginar", disse à Folha, por telefone, de Gand,
na Bélgica. "A merda e a máquina
são internacionais, e a máquina
de merda é a coisa mais cosmopolita de todos os tempos, de todas
as raças, sexos, classes", afirmou.
"Nosso cocô é parte de nós mesmos, é a fraternidade que não podemos construir com nossos cérebros. São nossos cérebros, nossos músculos e nossa carteira de
dinheiro que criam as diferenças.
Trata-se de um símbolo democrático e tem um poder político, de
subversão", acrescentou.
Segundo ele, sua máquina contesta a globalização, como um espelho de nosso sistema econômico, e também faz uma autocrítica
ao utilitarismo. "Como se a arte
fosse única cidadela contra um
mundo utilitário. Posso quase dizer que, se há algo inútil, é a arte."
A "Cloaca" exposta em Lyon,
nomeada "New and Improved"
(nova e melhorada), já é uma segunda versão, concluída em 2001,
da máquina original de 1999. Auxiliado por cientistas, Delvoye levou cerca de oito anos para criar
seu primeiro rebento. Agora, trabalha com duas empresas belgas
no projeto da "Cloaca Turbo", de
dimensões industriais, a ser exibida em Prato, na Itália.
"Essa nova máquina será menos transparente, feita em inox, e
com capacidade para consumir
250 litros de comida por dia, ou
seja, entre 40 e 50 quilos [de comida]", explicou. Para saciar essa fome pantagruélica, ele pretende
apelar a uma grande rede de pizzarias. E um novo software em estudo deverá capacitar a "Cloaca
Turbo" a produzir 200 gramas de
excrementos a cada 30 minutos.
"Será algo de uma ambição diabólica, grandioso, como a máquina de "O Mágico de Oz" ou a bomba atômica considerada Deus em
"O Planeta dos Macacos'", prevê.
Na prancheta, aguarda ainda o
projeto da "Personal Cloaca", de
uso doméstico, "miniaturizada"
no tamanho de uma máquina de
lavar, uma geladeira ou um forno
microondas. E sonha com a
"Cloaca Portátil" e a "Cloaca Conversível" (que poderia produzir, à
escolha, excrementos humanos,
de cães e de coelhos).
Por onde passa, a polêmica
"Cloaca" de Delvoye costuma
provocar protestos contra o desperdício de comida numa máquina de excrementos.
"Algumas pessoas dizem que
no Terceiro Mundo há tantas
crianças com fome, e que eu não
me dou conta disso. Sim, mas cada Ingres, Rubens ou Velázquez
também é passível de receber essa
mesma crítica. Ela é correta, graças à minha obra. É ela que faz
pensar nisso. Todos pensam nos
pobres na África, nas favelas, mas
eu penso muito mais nisso do que
Ingres", defende-se.
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