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ARTIGO
Retrospectiva de Duchamp é algo muitíssimo absurdo
Encenador critica mostra em cartaz no MAM de réplicas do artista francês, "o maior revolucionário de todos os tempos'
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Está em cartaz no Museu
de Arte Moderna, em
São Paulo, uma retrospectiva de Marcel Duchamp. A
simples idéia de uma retrospectiva para Duchamp teria sido, no mínimo, algo impensável ou risível quando ele rompeu com tudo, com a caretice
de tudo, com o chamado "bonitismo" da arte no início do século 20. Foi aí que começou o
nosso "desastre". Duchamp,
Freud e alguns outros são os
culpados pelos nossos fracassos. Mas explico: são os nossos
grandes heróis.
Quem destrói para construir
é aquele que consegue transformar o mundo num abrir e fechar de olhos e deixar todo
mundo de pé, plantado em seu
próprio mijo, sem ter o que dizer. Não à toa o urinol de Duchamp foi um dos primeiros
ready-mades, um combate contra a arte artesanal, a pintura e
a escultura tradicionais.
Retrospectiva de Duchamp é
muitíssimo absurda, ainda por
cima réplicas dos ready-mades.
Haroldo de Campos foi mais
longe, já que era um Duchamp
também, Du Champos! Construiu palavras de concreto e
cruzou a onomatopéia de Joyce
com o dadaísta francês. A arte
de vanguarda berra em uníssono sempre a mesma coisa: nosso pacto é o futuro, passado é
excremento! Retrospectiva,
portanto, não nos traz nem lágrima de cristal japonês.
E por quê? Porque, quando
Duchamp cancelou sua parceria com Tristan (sem Isolda)
Tzara, deixou Paris e nova-iorquinizou-se, o movimento em
si de deixar o velho pelo novo já
tinha um significado. Falo de
1911 ou algo assim. "Achar" objetos na rua e juntá-los era um
humor que os americanos não
tinham. Só vieram a ter nos
anos 60 com Andy Warhol.
Então, certo dia, Duchamp
cancelou sua exposição na Pace
Gallery, em Manhattan, e falou:
"Retirem todos os quadros,
apareço aí mais tarde com objetos novos". E somou ao já famoso "Nu Descendo a Escada"
(um dos mais escandalosamente lindos tributos à pintura em
movimento) seu maior e mais
conhecido quadro-não-quadro,
"o pai e a mãe" disso que chamamos hoje de instalação/manifesto: "A Roda de Bicicleta".
Essa roda foi assim: nesse
mesmo dia em que cancelava
sua exposição na Pace, Duchamp andava pelo Bowery,
perto da Houston Street. De
um lado da rua tinha uma roda
de bicicleta jogada fora. Do outro, um desses bancos de madeira de bar! Ele GRAMPEOU,
tacou a roda em cima do banco
e levou o treco para a Pace!
Esse foi o maior revolucionário de todos os tempos, em
qualquer contexto, em qualquer arte (sem ele não teríamos
John Cage na música nem Merce Cunningham na dança etc.).
É um saco ter que descrever
Duchamp!
A melhor maneira e a mais
triste de representar uma retrospectiva foi desenhada por
Saul Steinberg. O cartum é assim: um coelho olhando para o
oeste está sentado em cima de
uma tartaruga que caminha
lentamente para o leste.
Duchamp foi um dos primeiros enormes iconoclastas. Com
humor. Quebrou o vidro? Deixa
lá, quebrado. O acaso é ótimo!
Rasteira maior
O movimento dadaísta (não
os surrealistas caretas e marqueteiros!), o iconoclástico, o
desconstrutivista, o atonal, o
dodecafônico, o serialista, o
abstrato, o abstrato-expressionista, o minimalista, enfim, tudo isso visa a uma só coisa: colocar a arte debaixo da lente do
microscópio, autopsiá-la; dissecar se as verdades e mentiras
dos séculos anteriores de música e pintura e iluminismo e renascentismo, anos e anos de arrotismo de tantos e tantos
Rembrandts, Velázquez, Beethovens, Wagners e outros porcos e Hegels e Kants e os tantos
Goethes, ver se eles faziam
realmente sentido na era pós-Freud, na era pós-industrializada. A arte desse vanguardista
foi a maior de todas as rasteiras.
E no que deu? Estamos na
mesma. Aliás, estamos mais caretas. Estamos numa era pré-Duchamp, porque hoje o olhamos como se ele estivesse no
nosso passado, e toda essa porcaria pseudo-inovadora (salvo
alguns, óbvio, como Kiefer,
Beuys, Tunga, Warhol, Damien
Hirst e outros poucos) ainda
está naquela de "pensar a arte"
séria, serialista.
Voltamos ao quadrinho ou
quadrão, ao muralista Siqueiros, ou ao medíocre Portinari,
ou ao idiota do Henry Moore,
ou às instalações auto-indulgentes.
E o povo, ignorante como
sempre, se concentra ali na estátua dos retirantes no Ibirapuera, a metros, meio quilômetro da retrospectiva de Duchamp, sem nem sequer saber
o que foi tudo aquilo, se o ovo
de Colombo ficou em pé ou
não, ou se havia ovo de fato.
A Arte está MORTA, sim
(moribunda, pelo menos). E faz
anos que fazemos teatrinho de
representação infantil em torno de seu funeral para não perdermos emprego. Não passamos é de canastrões de última
categoria, com a azeitona na
ponta do esôfago, segura ali por
algum Nexium, Plexium, Sexium ou antiácido.
Afinal, antigamente as pessoas tomavam ácido. Hoje, só
tomam antiácido.
GERALD THOMAS é diretor teatral
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