São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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TELEVISÃO

Emissoras transformam garotos e garotas em protagonistas de programas

Jovens são os novos astros de "reality shows" nos EUA

JULIE SALAMON
DO "NEW YORK TIMES"

No bairro modesto de Long Island onde mora Frankie Evangelista, 8, é muito normal, numa noite de verão, ver crianças jogando bola ou aprendendo a andar de bicicleta na rua. Frankie faz essas coisas, como todas as crianças. Mas, enquanto curte os prazeres e constrangimentos da infância, costuma ser seguido por uma equipe de televisão -e isso vem acontecendo há mais de um ano.
Frankie não é ator, mas vai aparecer na televisão nacional americana, num novo "reality show" da rede HBO intitulado "Family Bonds" (Laços de família), que irá ao ar nas noites de domingo. Os telespectadores vão assistir aos momentos mais íntimos de sua família: Frankie chorando quando aprende a andar de bicicleta, sua mãe comentando quantas vezes por noite faz sexo com seu pai, sua irmã mais velha dando à luz (incluindo um close do bebê emergindo de sua vagina).
"Só sei que vou ficar famoso", disse Frankie, sentado no gramado em frente à sua casa para uma entrevista concedida algumas semanas antes da estréia do programa. Ele parecia ignorar o cinegrafista que gravava suas palavras, o som do homem parado ao seu lado com equipamentos de som e um fotógrafo de jornal registrando a cena inteira.
A impressão que se tinha era que, para o menino, ser astro de sua própria vida era um jeito totalmente natural de viver.
Na verdade, Frankie é apenas um entre dezenas de novos astros mirins da TV-realidade. Até agora o gênero era protagonizado principalmente por adultos -adultos com consentimento, que, presume-se, compreendiam as conseqüências de compartilhar suas manias, romances e crises com um público de milhões de pessoas.
Na temporada atual, porém, a TV-realidade está se voltando aos baixinhos. No programa "Trading Spouses", da Fox, e em "Wife Swap", da ABC, crianças são sujeitas a experimentos em que suas mães se afastam delas por várias semanas para viver com outras famílias, enquanto elas, as crianças, são obrigadas a adaptar-se a mães temporárias. A MTV vai colocar no ar "Laguna Beach", que vai acompanhar as dores e as dificuldades de adolescentes ricos e bonitos em Orange County.
Em dezembro, a N, a rede "irmã" da MTV voltada para telespectadores menores, vai exibir "Best Friend's Date", mostrando adolescentes em saídas com desconhecidos, e "Girls vs. Boys: Montana", uma espécie de "Survivor" para menores de idade.
"Será que é impróprio?" falou Sheila Nevins, presidente da divisão de documentários da HBO, referindo-se à participação de crianças e adolescentes em programas de TV-realidade. "Não sei. Provavelmente. Mas a grande atração agora são as pessoas reais. E Frankie, até agora, está sendo a maior não vítima de tudo isso. Judy Garland sofria muito mais do que ele."
Indagados sobre os possíveis riscos para menores de idade decorrentes de sua participação em "reality shows", vários profissionais de saúde mental falaram do envolvimento dos pais. Afinal, nenhum menor de idade pode participar de um programa desse tipo sem a autorização de seus pais e, em muitos casos, a participação da criança é idéia dos próprios pais.
"Não é tanto o fato de aparecer na TV que é problemático para as crianças -é o fato de virem de famílias que concordam em brincar dessa maneira, em serem objeto de brincadeiras desse tipo", comentou Margaret Crastnopol, psicanalista de Seattle que recentemente assistiu ao programa "Trading Spouses".
Mas a psicoterapeuta nova-iorquina Elaine Heffner, especializada em desenvolvimento infantil na primeira infância, não quis condenar os pais que inscrevem seus filhos em "reality shows".
"Acho que é muita soberba dizer a um pai ou mãe: "Você está exagerando ao deixar seu filho participar do programa em que você vai tomar parte'", disse ela. "Acho que é algo ao qual eu, pessoalmente, não quereria expor meus filhos, mas não é problema de mais ninguém, a não ser que realmente ocorra abuso infantil."
Lynn Bradley é uma das mães que iam aparecer no capítulo de estréia de "Wife Swap", da ABC. Mulher simples que vive na zona rural de Nova Jersey, corta sua própria lenha e trabalha como motorista de ônibus escolar, ela ia trocar de lugar com uma mulher mimada de Manhattan que sai às compras enquanto babás cuidam de seus filhos.
Ela e seu marido se envolveram com o programa, conta Bradley, quando responderam um anúncio publicado no jornal local. Por que ela concordou que sua família inteira participasse, incluindo suas filhas de 12 e 13 anos? "Principalmente por ser algo no qual podíamos participar todos, como família", respondeu. "Fomos avaliados por um psiquiatra para saber se as crianças seriam capazes de segurar a onda."
As redes de TV que exibem esses programas parecem compreender que pisam em terreno ético delicado. "Eu teria vergonha de admitir quantas horas foram gastas discutindo questões de segurança e cicerones", comentou Sarah Tomassi Lindman, vice-presidente de programação e produção da N, que exibe os programas de namoro juvenil e os do tipo "Survivor".
Estranhamente, o representante de relações públicas de "Trading Spouses", da Fox, não permitiu que as crianças que aparecem no programa fossem entrevistadas por um repórter de jornal, embora sua rede vá colocar as mesmas crianças na televisão nacional. "Quando se trata das crianças, tomamos muito cuidado", explicou em mensagem de e-mail.
Em vista da sede insaciável que a TV-realidade tem de novos temas, a introdução de crianças no gênero provavelmente era inevitável. "O coração da sitcom norte-americana é a família norte-americana", explicou Stephen Lambert, produtor executivo de "Wife Swap". "A TV-realidade se encaminha para tomar o lugar de muitas sitcoms tradicionais", continuou, sobre novo artifício da televisão para explorar e fantasiar o funcionamento das famílias.
Como quase tudo na TV, o gênero não é novo. A televisão pública rompeu a barreira da realidade em 1973, com "An American Family", uma espécie de dramalhão verídico, em 12 capítulos, sobre a família Loud, de Santa Bárbara, Califórnia. Durante o seriado, o pai ficou sabendo da homossexualidade de seu filho, e a mãe decidiu pedir divórcio.
É pouco provável que as famílias dos programas de hoje conquistem a mesma notoriedade da família Loud, simplesmente porque esta se expôs antes de essa exposição tornar-se uma prática relativamente comum. Além disso, os "reality shows" de hoje são mais leves, com poucas pretensões sociológicas. "Isto é entretenimento com apelo comercial", disse Steven Cantor, 35, produtor de "Family Bonds".
Ser escolhido para integrar o elenco de um "reality show" não é tão simples quanto talvez pareça. Os produtores procuram nos astros mirins da TV-realidade as mesmas qualidades que desejam em atores: a capacidade de projetar felicidade e angústia de maneira que leve o público a reagir.
Os menores de idade que participam de "reality shows" parecem totalmente despreocupados em relação à exposição da qual serão vítimas -na realidade, dizem ter gostado muito da experiência. Laura Bradley, 13, filha de Lynn, contou ter sentido prazer quando câmeras de TV invadiram sua casa em Nova Jersey por dez dias. "Dizem que depois de estar diante das câmeras você se vicia nessa sensação, e acho que é verdade", disse ela. "Gosto de sentir a câmera ligada o tempo todo e não me importo nada em saber que as pessoas vão me ver na televisão."
A mãe de Frankie, Flo Evangelista, foi a única pessoa da família que, num primeiro momento, relutou em participar de "Family Bonds". Ela conta que cedeu porque seu marido, Tom, que trabalha com o resgate de fianças, a convenceu de que o seriado seria bom para o negócio da família. Agora, diz, já aceitou a exposição. "Esta é nossa vida", disse ela. "A única diferença é que alguém está filmando e que irá tudo ao ar. Mas todos nós sentimos que não temos nada a esconder."
No entanto, talvez pelo fato de ter tido seu primeiro filho no ano passado, Cantor conta que vem protegendo Frankie na medida do possível. "Se ele chora facilmente, não quero que as pessoas pensem que é um maricas. Se ele não tivesse aprendido a andar de bicicleta depois de chorar, não teríamos aproveitado essa cena. Se isso tivesse deixado o programa menos real, azar."
Enquanto parentes entravam e saíam de sua casa, Frankie comentou como foi assistir à sua própria vida acontecendo em "Family Bonds", que ele viu numa sessão realizada na HBO, ao lado de um público grande.
"Achei superengraçado quando chorei na hora de aprender a andar de bicicleta", disse ele. "Achei o máximo."
Como ele se sentiu quando ouviu sua mãe falar de sexo na televisão?
"Eu tampei os ouvidos", afirmou Frankie.
Ele ficou com vergonha?
"Sei lá", respondeu o menino. "Meus ouvidos estavam tampados."
Há alguma coisa que ele gostaria que não tivesse saído na televisão?
Frankie olhou para Cantor, sentado perto dele, e sorriu. "Espero que tudo o que você filmou acabe na TV."


Tradução de Clara Allain


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