São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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DVD/LANÇAMENTO

Primeira temporada da produção de David Lynch que influenciou geração de roteiristas chega em caixa

Estranho mundo de "Twin Peaks" volta a assombrar

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO

Dezessete anos, drogada e prostituída. Há 14 anos, uma garota chamada Laura Palmer revirou a vida (aparentemente) modorrenta de uma cidadezinha norte-americana chamada Twin Peaks.
Bizarra, surpreendente e popular. "Twin Peaks", a produção de onde saiu a personagem alterou de maneira irreversível as séries de TV (decididamente) modorrentas da época. O culpado: David Lynch, diretor que joga o conservadorismo narrativo às favas.
Ela retorna agora em forma de box com quatro DVDs contendo a primeira temporada e extras. Passado tanto tempo, a série ainda assombra, em um momento em que o bizarro é moeda corrente na televisão atual por vias tortas e nada artísticas -vide a realidade dos inúmeros "reality shows".
"Twin Peaks", criada por Lynch e Mark Frost, estreou em abril de 1990 na rede aberta norte-americana ABC e logo tornou-se um fenômeno de audiência (no Brasil, foi exibida em 1991 pela Globo). A trama gira em torno do assassinato de Laura, uma aparentemente garota-modelo da fictícia cidade. Logo no episódio inicial, ela aparece morta e nua, enrolada em um saco à beira-mar.
Com a chegada do agente do FBI Dale Cooper (Kyle McLachlan) as camadas de aparente normalidade serão destruídas. No decorrer das investigações, surge um mundo sombrio e surreal onde ninguém é o que parece ser.
Na estréia, "TP" teve mais de 20 milhões de espectadores e 33% de share. Ou seja, um terço das TVs ligadas no horário estavam assistindo à produção. Para efeitos de comparação, a série mais vista nas últimas semanas nos EUA, "CSI", tem 22% de share.
""TP" trazia personagens exóticos e com manias estranhas em um formato de drama, o que antes só acontecia em sitcoms; exigia que os espectadores mantivessem na mente detalhes do enredo por vários episódios e foi uma das primeiras séries que precisavam de um completo silêncio durante sua exibição", diz à Folha David Lavery, professor de inglês da Middle Tennessee State University e organizador do livro "Full of Secrets: Critical Approaches to "Twin Peaks'" (Repleto de segredos: introduções críticas a "TP').
A provocação era tal que, no episódio final da primeira temporada, a identidade do assassino não era revelada por completo, além de deixar praticamente todas as situações em aberto. "Se dependesse de Lynch, o mistério jamais seria descoberto", diz Roberto Moreira, cineasta e professor de dramaturgia da ECA-USP.
"Um artigo publicado em uma revista americana logo depois que "TP" foi ao ar chamou-a de "a série que vai mudar a TV para sempre". "TP" teve um impacto duradouro. Muitos dos grandes inovadores da TV atual, como David Chase ("Os Sopranos') e Joss Whedon ("Buffy, a Caça-Vampiros'), costumam falar sobre sua admiração pela série. Não é por mera coincidência que ambos fazem uso constante de sonhos em suas séries -uma influência clara de "TP'", argumenta Laveary.
Lynch usou recursos típicos do cinema. Cada episódio, com closes e planos que lembravam seu longa anterior, "Veludo Azul", e a música de Angelo Badalamenti, assemelhava-se mais a um filme de uma hora de duração.
Em entrevista à Folha, Erica Sheen, professora de teoria literária e fílmica na Universidade de Sheffield e uma das organizadoras do livro "The Cinema of David Lynch: American Dreams, Nightmare Visions" (O cinema de David Lynch: sonhos americanos, visões do pesadelo), defende: "Lynch tem influenciado muito mais a TV do que o cinema. "TP", definitivamente, deixou sua marca em séries como "Arquivo X" e "A Sete Palmos". O que essas séries têm em comum é um cruzamento entre a vida diária e o estranho".
""TP" mostra como cultura pop e pretensão artística podem conviver e gerar produtos desafiadores. Pela primeira vez, nos EUA, surgia um produto ambíguo, com uma narrativa em que a subjetividade do autor era o que "explicava" os eventos. Assim como o cinema tem Bergman e Fellini, a TV tem Lynch", diz Moreira.
A lua-de-mel com o público acabaria na segunda temporada. Logo no início, o mistério já estava esclarecido. O roteiro foi se embrenhando cada vez mais em delírios surrealistas e os índices de audiência despencaram a ponto de a ABC cancelar o programa. Lynch ainda faria o canto de cisne "Twin Peaks - Fire Walk with me" (1992), ou, no Brasil, "Os Últimos Dias de Laura Palmer", longa para o cinema que conta os eventos anteriores ao assassinato. Sem os limites da TV, Lynch partiu para um caminho ainda mais fragmentado, desagradando aos fãs.
A primeira temporada, no entanto, permanece como um dos melhores trabalhos de Lynch. E o fantasma de Laura Palmer volta a pairar, de forma incessante.


TWIN PEAKS. Lançamento: Paramount. Quanto: R$ 145, em média.

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