|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
A qualidade doce-amarga de "Peanuts"
ÁLVARO DE MOYA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Desde 2 de outubro de 1950,
quando Charlie Brown
atravessou a rua e foi alvo de um
comentário de ódio de outro
menino, até a virada do século,
os leitores jamais viram um
adulto desenhado. Tal como a
genial peça de García Lorca, "A
Casa de Bernarda Alba", em que
nenhum homem aparece, mas
sua dominação é onipresente,
aqui jamais vimos a professora,
porém a sabemos.
O autoconhecimento é um sofrimento real, no choque maldoso entre os seres, nos balõezinhos profundos e cheios de sutis
insinuações que marcarão a
criança até o confessionário ou
o sofá de Freud.
Se o autor Schulz foi sucesso
na vida, seus personagenzinhos,
a começar de Charlie Brown,
que jamais conseguiu empinar
uma pipa, são destinados ao fracasso. Lucy van Pelt é a futura
matriarca americana, que vai
infernizar a vida do marido tal
como faz com seu irmãozinho,
Linus, que só quer manter sua
infância naquele cobertor, que
ela teima em lhe roubar. Ou
quando ela -na tira predileta
de presidentes dos EUA- tira a
bola de futebol da frente de
Charlie no exato momento em
que ele vai chutar.
Mas Lucy tem seu castigo. É
apaixonada pelo eterno pianista
Schroeder, que não larga um
piano de brinquedo. Peppermint Patty nunca sabe a lição,
vítima da não-vista professora.
E todos os outros personagens
são problemáticos.
Exceto, claro, o cão filósofo, o
beagle Snoopy, que é a antítese
de Charlie Brown. É, na sua
imodesta própria opinião, um
escritor de sucesso, aviador,
grande atleta, cujos comentários auto-suficientes aparecem
em balõezinhos no formato de
pensamentos profundos.
Pior, com aceitação maciça
pelos milhões de leitores nos
jornais do planeta, ele periga assumir o posto de astro entre os
personagens. Seria o máximo
da humilhação para o pequeno
menino herói ter sua posição
perdida justo para um simples
cãozinho. Felizmente, o autor
sempre cuidou para que isso jamais acontecesse.
Schulz é o elo entre a tira tradicional e a moderna. Influenciou
criadores de quadrinhos como
Quino, com sua Mafalda, Maurício de Souza, com a Mônica,
Jules Feiffer e especialmente o
autor de Calvin, Bill Watterson
-que sempre foi admirador de
George Herrimann/Krazy Kat,
Elzie C. Segar/Popeye e Walt
Kelly/Pogo e achava que as tiras
estavam decadentes, abrindo
exceção só para Schulz e seus
meninos-adultos.
Umberto Eco criticou eventos
sobre "comics", como os salões
de Lucca, afirmando que não se
misturavam os estudiosos de
Pavlov com cachorrinhos que
confirmavam sua salivação ao
ouvir o plim-plim em russo.
Mas a presença de Snoopy nos
estudos dos "comics", em todos
os pontos do planeta onde se
mostra um interesse por essa
forma de expressão do século,
foi importante para detectar a
criatividade no mundo de hoje.
Como conclui o enciclopedista francês radicado nos Estados
Unidos, Maurice Horn, na "The
World Encyclopaedia of Comics", mais importante obra do
gênero: "Estas crianças que raciocinam e agem como adultos,
as situações nas quais a comédia
é um tênue véu atirado sobre
um sadismo oculto, a crueldade
escondida sob uma risada, tudo
isso permite a "Peanuts" uma
qualidade doce-amarga."
Álvaro de Moya é estudioso de quadrinhos, autor de "Vapt Vupt" e "O
Mundo de Disney", entre outros
Texto Anterior: Minduim integral Próximo Texto: Televisão - "Um Só Coração": Minissérie desvenda passado de São Paulo Índice
|