São Paulo, terça-feira, 05 de agosto de 2008 |
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Goifman embaralha fobias reais e atuações
"Filmefobia" mistura atores e fóbicos para intensificar a exposição ao medo
Homem com pânico de fogo é confinado com chama artificial SILVANA ARANTES DA REPORTAGEM LOCAL Veterano na direção de documentários, o cineasta Kiko Goifman ("33", "Atos dos Homens", "Morte Densa") estréia na ficção com uma trama sobre o uso da imagem e a busca pela verdade no cinema. Em "Filmefobia", cuja primeira exibição pública será no Festival de Locarno (Suíça), no próximo sábado, o documentarista Jean-Claude, interpretado pelo crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, acredita que "a única imagem verdadeira é a de um fóbico diante de sua fobia". E parte atrás dela. O acordo que Jean-Claude faz com os fóbicos que aceitam aparecer em seu filme prevê que, na hora de rodar as cenas, eles serão atados de tal forma que não possam desviar nem o corpo nem o olhar da visão que os apavora -cobras, pombos, anões, ratos, palhaços, seringas, altura, sexo etc. Além disso, a exposição aos objetos que causam fobia é sempre intensificada. Nua e com o corpo lambuzado de óleo, a fóbica de cabelos é exposta a uma chuva de fios, que grudam em sua pele. A mulher que tem pavor de ralos de chuveiro é obrigada a tomar banho num piso com quase uma dezena deles. A imagem do pânico está, dessa forma, garantida? Não. Pelo menos não, no caso do fóbico que se mantém inerte diante da visão que lhe causa fobia e reage, depois de ser desamarrado, com uma acusação a Jean-Claude: "Você é sádico!". O documentarista revida: "Você aceitou o acordo. Se sou sádico, você é masoquista". "Ambivalência" Vendo o filme (a Folha assistiu a uma sessão privada), a impressão é a de que essa cena não foi ensaiada -seu registro é, portanto, documental. E aqui começa o que Goifman chama de "a ambivalência de "Filmefobia'". Nos papéis dos personagens fóbicos, o diretor escalou "atores, pessoas fóbicas de verdade e atores que são fóbicos", segundo diz. Para "encorajar o elenco" a produzir as impactantes imagens do longa, Goifman assumiu também um papel. Escolheu um que fosse relativamente fácil. "Meu personagem só tinha que desmaiar. Não era muito complicado", diz. O personagem de Goifman, que se chama Kiko, sofre de fobia de sangue -assim como o cineasta na vida real. No filme, Kiko e Jean-Claude jogam um xadrez de sangue, do qual fazem parte cartas com imagens de feridas e testemunhos recíprocos. Num deles, Jean-Claude relata quando se deu conta de que seu sangue "estava podre". Bernardet, como sabem os que leram "A Doença, uma Experiência" (Companhia das Letras, 1996), é soropositivo. Com tantas imbricações, "Filmefobia" se insere, assim, no território que Bernardet define como "autoficção". Quando fala como teórico do cinema, ele diz que "só pensa em fronteira entre documentário e ficção quem não quer ou não pode ter um pensamento fora dos moldes tradicionais". A "autoficção", que consiste em viver ficcionalmente a própria vida no cinema, não é diferente do que fazem os participantes do "Big Brother Brasil", na avaliação do crítico. A tendência a "se representar, a ser ator de si mesmo, a inventar-se como pessoa", na opinião de Bernardet, deriva da falência da subjetividade. E essa falência "civilizatória" seria conseqüência do excesso da valorização do indivíduo ou daquilo que o pensador francês Gilles Deleuze, como cita Bernardet, chama de "imperialismo do eu". Algo que atingiu até o cinema. "O filme de autor é uma manifestação da hipertrofia do "eu'", diz o crítico. Goifman afirma "não concordar" com a catalogação de "Filmefobia" como um exemplar de "autoficção" cinematográfica. "Fiz um filme de ficção, com uma total atmosfera de documentário. Como não sou teórico do cinema, não me preocupa diagnosticar a falência dessas categorias, até porque sei que jamais vou conseguir inventar outras", afirma. Faz parte da "atmosfera de documentário" do longa não deixar claro quem atua como fóbico e quem de fato o é. Parte das fobias foi incorporada ao filme a partir de relatos enviados a um blog da produção. Mas algumas foram inventadas pelo roteirista Hilton Lacerda. São as melhores, na avaliação de Goifman. "As histórias que mais nos convenceram foram as inventadas", diz. O cineasta afirma que "esse embaralhamento faz todo o sentido" para aquilo a que o filme se propõe e o "coloca nessa zona de fronteira entre ficção e documentário". Quando se refere à fronteira, Goifman imagina "não uma linha de separação, mas um espaço que vai de um lado para o outro". "Utopia documental" No 61º Festival de Locarno, que começa amanhã, "Filmefobia" será exibido na seção "Cineastas do Presente" (o filme deve estrear no Brasil em 2009). Mesmo tendo caminhado para a ficção, Goifman, 40 anos completados hoje, sente-se contemporâneo e afim ao documentarista Eduardo Coutinho, 75. "Talvez eu esteja querendo dizer [com "Filmefobia'] que essa busca da imagem verdadeira não faz nenhum sentido", diz o diretor. "Interessa-me mais o caos proposto em "Jogo de Cena", de Coutinho, do que uma busca por uma imagem verdadeira numa utopia documental." Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Mostra reúne sucessos do cinema judaico Índice |
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