São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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CRÍTICA

O vale-tudo da realidade na novela

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Aguinaldo Silva reconstitui os dias de luta de 1968 como ponto de partida para uma história de bebê roubado em "Senhora do Destino". "Começar de Novo" tem suas cenas iniciais gravadas na Rússia. Para escrever a próxima novela, "América", Glória Perez entrevista deficientes visuais, negocia com ONGs etc. Por que será que os ficcionistas da TV precisam tanto da chancela da "realidade"?
Parece -e alguns autores de telenovelas afirmam isso "ipsis literis"- que é ao contrário, ou seja, que a telenovela goza de uma enorme liberdade ficcional. Ou pelo menos isso é invocado como defesa quando comentaristas e espectadores reclamam dos festivais de incoerências e incongruências que se vê nos roteiros. E não é mais nos detalhes: as duas principais novelas no ar, a das sete e das oito da Globo, têm tramas baseadas em desatinos.
"Senhora" começou em 1968, pulou para "agora" e depois voltou a 1992/ 93. Primeiro, as contas das idades não combinavam com a data do presente da novela; depois, são os figurinos, gírias e objetos de cena que entram e saem de uma máquina do tempo da qual só o autor sabe a regulagem. "Começar" tem como protagonista um sujeito que fez fortuna com petróleo na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas dos anos 70.
OK, pode-se imputar à proverbial ranhetice da crítica o mau humor com tais absurdos aritméticos e históricos, mas nesse caso perde-se de vista a questão que talvez deva ser colocada: por que o escritor de telenovela, senhor de tanta liberdade ficcional, precisa justificar sua história criando ligações, que depois vai desrespeitar, com a realidade?
Talvez porque, em vez de liberdade, o que se observa é uma enorme fragilidade na ficção feita para TV. Parece que ninguém sabe mais qual história quer contar -e daí para não saber como contá-la é um pulo. Então, apela-se para a realidade, como que para preencher o vazio. Se, entre os anos 70 e os 90, parecia que a novela poderia fazer um papel semelhante ao de Hollywood na cultura americana, hoje é evidente que ela não tem mais fôlego. E talvez nem mesmo o interesse.
As inserções da história, da geografia e das questões sociais são marretadas no meio da trama de qualquer jeito e, assim, a história do golpe dentro do golpe em 68 torna-se pretexto para uma cena de turbulência na rua, a Rússia vira sinônimo de um país distante e exótico qualquer e assim vai. Viram ornamentos caríssimos -produção esmerada, deslocamentos de equipes enormes para o exterior-, mas que são apenas isso, ornamentos. Mostram imagens, criam situações que não fazem sentido -se nem mesmo os autores zelam por esse sentido, por que o espectador haveria de fazê-lo?
E claro que essas operações contam -e não é pouco- com a ignorância do espectador. Afinal, na ficção vale tudo, não é mesmo?


@ - biabramo.tv@uol.com.br


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