São Paulo, quinta-feira, 07 de agosto de 2008 |
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NINA HORTA A volta da língua ao despretensioso
SE VOCÊ chegou a uma altura da vida em que gosta mais da comida dos empregados do que a do restaurante, mais da dos garçons de um bufê do que a do próprio bufê, é que a idade vem chegando... A língua curiosa já passeou por todas as etnias, já comeu de tudo um pouco, já parou em todos os restaurantes e botecos, já comparou, já leu, já chorou, riu, gostou, resmungou... e voltou ao mais despretensioso. Um dos últimos livros de Elizabeth David, a escritora-guru da Inglaterra logo após a guerra, chama-se "Uma Omelete e uma Taça de Vinho." Acontece que a pessoa que faz a mesma comida durante anos vai adquirindo uma mão perfeita. Conhece o arroz só de sopesá-lo com a mão, sabe se o feijão é novo, preocupa-se com o alho, sabe por intuição a hora de tampar a panela e a hora de destampar. Com carnes de segunda ninguém ultrapassa uma cozinheira caseira, que é obrigada a fazer muito bem o que é barato. Vamos a algumas coisas que descobrimos na nossa cozinha, prontas para serem comidas no almoço, sem a nossa participação de patrões. Torresmo de galinha, o que é uma perdição. Enquanto o último não some da tigela, é impossível parar de comer. Imagino que aquele pé-de-galinha-torresmo do Ferrán Adrià seja resquício de comida de cozinha. Sardinhas frescas da feira, fritas, bem secas, com limão, é o único jeito que gosto de sardinhas. Bom para a saúde, humilde, humílimo. Ovo frito. Uma gerente nossa fazia o ovo segundo preceitos da avó, no azeite e com a clara meio durinha, com uma pitada de sal e outra de pimenta do reino, sobre um arroz bem branco que se manchava com a gema. Era o máximo da comida de alma, e ela só descia correndo para fazer quando achava que o comedor estava nas últimas da carência. O frango assado da Deinha, do qual já falei aqui, com legumes rústicos grelhados, inclusive batatas com alecrim. (Não sei o porquê, odeio frango com batatas desde a mais tenra infância, mas, assim separados, como os da Deinha, eram coisa diferente, de não se botar defeito). Ela foi embora, não responde ao telefone, e lamentamos seus biscoitinhos e seu inefável frango, seu cuidado em geral com a comida da criadagem, como ela dizia pernosticamente, satirizando alguma novela da TV. Não sei dizer em português, talvez haja uma expressão. Os empregados, quando cozinham para si mesmos, sabem, têm a disciplina de "leaving well alone", não mexer no que está bom. Afinal, parece que é um lema a ser usado em arquitetura, pintura etc e tal. Na cozinha, é de um valor absoluto. E as folhas de alcachofra, que não são mais servidas? Repararam que só existem fundos de alcachofra? E já imaginaram o quanto as cozinheiras comem de folhas de alcachofra que sobram dos fundos? Baldes. Minha sócia se especializa em galinha branca, galinha de caldo, e eu, em asas e curanchim bem-assados ou ensopados e em copinhos de cachaça cheios de caldo de feijão. E músculo? O mesmo músculo feito na cozinha pode ser trabalhado de todos os jeitos por um grande chef que jamais chegará ao veludo saboroso entremeado da gelatina. Até o músculo para cachorro, aquele que vai se esfiapando, sem sal, é melhor do que qualquer filé recheado com nozes e damascos. Pipoca de panela, pipoca de milho roxo, miúdo, mais saboroso do que os outros, salada de batata quente, cheia de azeite e salsinha fresca. E beiradas da limpeza do salmão, gorduchas. E pirão de nada? Só água, sal, boa farinha, um pouco de coentro e, quando estiver com boa textura, abre-se um ovo por cima. E de sobremesa pão-de-ló fofinho com limão e açúcar por cima. Ah, e maria-mole em quadrados espetada num palito. É mesmo o que basta, uma omelete e um copo de vinho. ninahorta@uol.com.br
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