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Romance de William Gibson escrito em 1984 deu nome e inaugurou a corrida ao ciberespaço; publicado só em 1991 no Brasil, "Neuromancer" estava esgotado e ganha tiragem revisada pela editora Aleph
Profeta do ciberespaço enfrenta a realidade
DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL
O que é a Matrix? Muito antes
que os irmãos Wachowski, em
1999, levassem ao cinema a pergunta de US$ 1 bilhão, o escritor
americano William Gibson, 55, já
tinha estado lá. E o livro "Neuromancer", que ganha agora reedição nacional dez anos após ter-se
desintegrado das prateleiras, é o
testemunho de fé do que (pre)viu.
O ano era 1984, os computadores pessoais e os primeiros sistemas de comunicação telemática
ainda engatinhavam. Não havia
internet. E Gibson, leitor incondicional das histórias de H.G. Wells
e Júlio Verne, resolveu arriscar ele
mesmo um palpite sobre o futuro.
"Um dia parei para observar algumas crianças em uma daquelas
antigas casas de fliperama, com
máquinas enormes em que você
enfiava moedas para jogar. Os jogos não eram tão interessantes,
eram apenas pontos se movendo
na tela. Mas, na postura dos jogadores diante delas, vi um tipo de
paixão física, percebi que o lugar
que essas crianças queriam estar
era dentro do jogo, do outro lado
da tela, tomando parte daquele
mundo virtual que elas estavam
presenciando. E eu acertei na
mosca", diverte-se o escritor, sem
falsa modéstia, em entrevista à
Folha, de Vancouver, no Canadá.
Com "Neuromancer", policial
noir que troca o detetive por um
hacker de computador e o cenário
anos 30 por um futuro à "Blade
Runner", Gibson foi o primeiríssimo escritor a descrever o ciberespaço. Batizou-o de Matrix.
"A Matrix teve sua origem nos
primeiros jogos eletrônicos, nos
primeiros programas gráficos e
nas experiências militares envolvendo conectores cranianos. No
monitor Sony, uma guerra do espaço bidimensional desaparecia
atrás de uma floresta de brotos gerados matematicamente", escreveu. Lembra a imagem aí ao lado,
não? Só que ela foi divulgada pela
primeira vez na semana passada.
Pouco confortável com o rótulo
de profeta, o escritor diz preferir o
de poeta. "Sempre fui bom na
poesia da tecnologia. Nunca me
preocupei com o lado técnico dessas coisas. Do contrário, a minha
imaginação teria sido confinada a
um sentido mais realista do que,
naquela época, era possível."
Assim a mesma atenção com
que ouvia nos anos 70 sobre os experimentos secretos de informática do Exército americano, Gibson
dedicou dias atrás a um técnico de
telefone que lhe atendeu em casa.
"Você sabia que ninguém pode
ter certeza se a nossa conversa está mesmo se passando entre o Canadá e o Brasil? Porque o sistema
telefônico é tão inteligente, que alterna as coisas para se otimizar.
Nós podemos estar nos ligando
por satélite ou por uma rota na
Itália, ninguém sabe, isso muda
sempre. Eles [os técnicos] chamam isso de "a nuvem'", filosofa.
De metáfora em metáfora,
"Neuromancer" faz da tecnologia
o pano de fundo para a história
comum de um herói de poucos
escrúpulos que se presta a um trabalho de espionagem política para conseguir uma "recauchutagem" em seu organismo, entupido de drogas sintéticas. "Crio histórias sobre personagens e sociedades, a tecnologia é só uma forma de camuflagem, uma isca para
os leitores", explica o autor. A "isca" rendeu a "Neuromancer" os
respeitáveis prêmios de ficção Nebula, Philip K. Dick e Hugo.
Povoada de hackers, vírus de
sistemas e computadores portáteis -que só viriam a se popularizar uma década depois-, a prosa
de "Neuromancer" nos transporta a um universo cada vez mais familiar à medida que o tempo passa. "À essa altura, nem pretendo
mais estar à frente da tecnologia.
Faço apenas esforços para acompanhá-la", conta, referindo-se a
"Pattern Recognition", seu livro
mais recente, lançado no início do
ano e pela primeira vez conjugado
no presente do indicativo.
Na trama, a personagem central
é uma "consultora de tendências". Alérgica aos principais clichês da sociedade de consumo
-ela tem literalmente um treco
ao ver o boneco da marca de
pneus Michelin-, Cayce Pollard
detecta padrões, percebe mudanças sutis no comportamento das
pessoas e as vende para grandes
multinacionais. No tempo livre,
usa sua sintonia fina para buscar o
fio condutor de uma misteriosa
série de vídeos plantados na rede,
aparentemente sem relação um
com o outro. E o hobby vira vício.
"Queria escrever um livro sobre
uma personagem que vivesse parte de sua vida real e emocional
através da internet, mas fosse jovem o suficiente para não ter que
ficar pensando sobre isso. A web
está lá e pronto", diz.
Enfim, nem só de profecias vive
William Gibson. Testada pelo
tempo, contradita pelo final da
Guerra Fria, em muitos casos, a
imaginação do escritor foi até
mais brilhante que a realidade:
"O que os hackers fazem hoje é
algo provavelmente bem mais niilista do que qualquer coisa que eu
pudesse ter imaginado: pessoas
entediadas tentando quebrar o
sistema só para provar que podem. Em "Neuromancer", os hackers são criminosos profissionais,
eles ganham a vida com isso. E eu
achando que o crime compensaria no ciberespaço!".
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