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CINEMA
Com produção em alta e prestígio de crítica, filmes da América Latina ocupam espaço de ponta a ponta na mostra
Festival de Cannes cede ao ataque latino
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Um quê de Miami toma conta
da edição 2004 do Festival de Cannes -os latinos estão por toda
parte. Na competição pela Palma
de Ouro, nas mostras paralelas,
em retrospectivas, na Quinzena
dos Realizadores, na Semana da
Crítica; em cada quadrante (oficial ou paralelo), enfim, do mais
importante festival europeu de cinema há um filme produzido no
costado oposto do Atlântico.
"A América Latina traz a Cannes neste ano uma característica
de renovação e energia. Buscávamos essa energia", diz à Folha
Thierry Frémaux, diretor artístico
do festival. É por decisão de Frémaux que a argentina Lucrecia
Martel ("La Niña Santa") e o brasileiro Walter Salles ("Diários de
Motocicleta") competem pela primeira vez à Palma de Ouro, prêmio máximo do festival.
É também por escolha de Frémaux que um filme equatoriano
("Crónicas", de Sebastián Cordero) e um uruguaio ("Whisky", de
Pablo Stoll e Juan Pablo Rebella)
integram a seção Un Certain Regard (Um Certo Olhar), vista por
aproximadamente 4.000 jornalistas e críticos de distintos países.
Copa do Mundo
"Comparo isso com a última
Copa do Mundo [2002], quando o
Equador se classificou pela primeira vez. Talvez a presença de
"Crónicas" em Cannes seja o fato
mais importante para os equatorianos neste ano, porque coloca o
país no mapa", diz Cordero, o diretor do filme. A média de produção de longas no Equador é de um
a cada três anos.
História de ficção, "Crónicas"
acompanha dois jornalistas do
programa sensacionalista "Una
Hora con la Verdad" no vaivém
de uma reportagem investigativa
em que tramóias políticas e desvirtuamentos do poder da mídia
se misturam.
Presente em Cannes na competição de curtas-metragens (com
"Quimera", experimento da fusão
das linguagens do cinema e das
artes plásticas), o brasileiro Eryk
Rocha acha que a tendência ao
ufanismo com o "boom" latino
pode embaçar a percepção de um
problema crônico na região -a
dificuldade de circulação dos filmes entre os países vizinhos.
"É preciso ir a Paris para ver filmes argentinos. Não podemos ter
deslumbramento com o Primeiro
Mundo nem cair na ilusão de que
bastam as atenções da Europa e
dos EUA voltadas para nós."
Cinema novo
O documentarista chileno Patricio Guzmán, escalado na Seleção
Oficial com "Salvador Allende",
acha frágil a idéia de que estamos
diante de uma onda latina no cinema mundial. "O êxito dos filmes argentinos atuais é concreto,
mas isso não significa uma onda
latina. Não é nada comparável ao
que foi o movimento do cinema
novo no Brasil [nos anos 60] ou a
pujança que o cinema mexicano
teve um dia", afirma.
Na opinião de Guzmán, radicado na França há quatro anos, "o
realismo mágico e a política sepultaram o cinema na América
Latina".
"Por um paradoxo, ou talvez
uma bela coincidência", como
aponta Frémaux, estarão lado a
lado em Cannes o cinema novo
dos 60 e a efervescência atual. O
festival organiza retrospectiva de
títulos brasileiros com trajetória
em Cannes, para homenagear os
40 anos da edição em que competiram pela Palma de Ouro os brasileiros "Vidas Secas", de Nelson
Pereira dos Santos, e "Deus e o
Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha (1939-1981), pai de
Eryk Rocha.
"Cada país ou cada continente
tem os seus ciclos. O do cinema
novo durou dez, 15 anos e estagnou. Agora, há algo que recomeça. Neste ano, conseguimos fazer
uma homenagem à história e à
atualidade", afirma Frémaux.
O crítico Aurélien Ferenczi, da
revista francesa "Télérama", enxerga "duas ondas simultâneas"
no panorama da produção latina,
uma formada pelos argentinos e
outra que reúne diversos nomes
de outros países.
Internacionalização
"Cineastas como Walter Salles,
Fernando Meirelles ["Cidade de
Deus"], Alejandro González Iñárritu ["Amores Brutos"] e, talvez,
Beto Brant ["O Invasor"], têm a
preocupação -não vergonhosa- de se tornarem internacionais", diz Ferenczi.
O crítico tem dúvidas se "esses
cineastas continuarão a fazer filmes em seus países de origem",
enquanto "os argentinos são diretores com um perfil cinéfilo, fazem filmes artesanais, com pouco
dinheiro e pretendem continuar a
trabalhar nessas condições, ao
menos no caso de Lisandro Alonso ["Los Muertos", na Quinzena
dos Realizadores], Diego Lerman
["Tan de Repente"] e Daniel Burman ["El Abrazo Partido", vencedor em Berlim neste ano]".
Ferenczi observa uma coincidência entre o perfil dos diretores
argentinos e o dos uruguaios de
"Whisky", autores de um único
filme anterior, "25 Watts".
"25 Watts" (2001) foi feito com
US$ 200 mil (cerca de R$ 593 mil).
"Whisky" custou o dobro, "um
passo gigante", segundo o diretor
Rebella, num país que produz em
média três filmes por ano.
Com uma indústria cinematográfica tão incipiente, Rebella diz
que "seria muito atrevido" nomear-se cineasta no Uruguai. Ele
e Stoll trabalham também como
publicitários. Whisky é a palavra
que os uruguaios costumam dizer
para aparecer sorrindo em fotos.
A dupla escolheu esse título "porque o filme tem a ver com esse
sorriso falso".
Rebella diz que não se sente parte da onda latina. Ele avalia que
muitos filmes da região ainda se
assentam na "pobreza para exportação", o que contribui para
"aprisionar o cinema latino num
rótulo". A exceção, afirma, são
"os novos autores argentinos".
A admiração pelos argentinos
também é notada em Walter Salles. "À diferença da maior parte
da crítica européia, considero que
o cinema mais interessante da
atualidade não é o asiático, e sim o
argentino", afirma.
Além dos latinos, os asiáticos
também tomaram Cannes de assalto neste ano. "Temos três filmes da Coréia na Seleção Oficial.
Por quê? Porque a Coréia é um
país com política pública de cinema, e Cannes está atento a isso",
diz Frémaux.
É para um asiático em especial,
o chinês Wong Kar-wai ("Amor à
Flor da Pele"), que se voltam as
apostas de vitória da Palma. O
prestigiado Kar-wai tem entre
seus maiores fãs o norte-americano Quentin Tarantino, presidente
do júri oficial de Cannes.
O diretor artístico da mostra
afirma que "Tarantino não decidirá sozinho, pois preside um júri
de oito pessoas" e diz que o resultado pode "trazer uma surpresa".
Frémaux ampara-se em exemplos: "Quando David Lynch foi
presidente do júri, deu a Palma a
Roman Polanski, por "O Pianista"
[2002], um filme clássico, completamente diferente de sua
obra".
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