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Che S.A.
Ícone do comunismo ressuscita em filmes, roupas de grife e bugigangas do hipercapitalismo
DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL
É preciso endurecer, mas sem
perder a ternura. Gisele Bündchen que o diga. Desde que foi
capturado pelas lentes do fotógrafo Alberto Korda, em 1960, o rosto
do guerrilheiro Ernesto Che Guevara vem rompendo sua "exclusividade" com a militância de esquerda e ilustrando objetos cada
vez mais prosaicos. Ou menos
ideologizados: isqueiros, garrafas
de vodca, bonés e biquínis.
Com badalada estréia mundial,
"Diários de Motocicleta", o novo
filme de Walter Salles, sobre a viagem do então estudante de medicina argentino que ficaria conhecido mais tarde como líder da revolução cubana, é não só mais um
produto do interesse da indústria
pela figura de Che. Para o canadense John Trigiani, dono da
maior loja de artigos temáticos de
Guevara na internet, o filme vai
funcionar como uma baita propaganda gratuita.
"Estou percebendo um início de
movimentação com esse filme,
que vai se ampliar ainda mais
com a estréia de outro, em 2005,
com Benicio del Toro e direção de
Steven ("Traffic") Soderbergh",
comemora Trigiani, 36, um ex-fotógrafo que há cinco anos resolveu montar sua própria filial de
produtos Guevara, depois de cansar de trazer camisetas e broches
sempre que visitava um amigo
cubano. Mais do que camaradagem, as encomendas ajudavam a
pagar suas viagens.
"Só comecei porque havia demanda. Os americanos queriam
as camisetas, mas não podiam [ir
comprar] por causa do embargo."
O negócio, que começou no site
de leilão e-Bay e hoje tem endereço próprio (www.thechestore.
com), não pára de crescer. "Produtos para todas as suas necessidades revolucionárias", é o slogan
da loja, cuja clientela é constituída
85% por norte-americanos.
No Brasil, o rosto de Guevara
freqüenta não apenas as portas de
universidades, reduto tradicional
de seus fãs. O ícone comunista
hoje alimenta o despudor hipercapitalista da indústria da moda.
"Essa é uma estampa superpop,
que está em camelôs do mundo
inteiro. É uma coisa que toda hora
volta", afirma Fabiana Kherlakian, 36, diretora de criação da
Cia. Marítima, que em 2002 ajudou a criar o famoso biquíni que
Gisele Bündchen desfilou na passarela do São Paulo Fashion
Week, exibido até em capa da revista norte-americana "Time".
"Não tínhamos nenhuma pretensão de fazer política. A imagem do Che é só uma imagem
pop como a do Mickey. É uma
imagem que se transforma ao
longo dos anos. Em 2029 ela vai
ter um outro significado."
A fotógrafa e estudante de publicidade Talita Abrão Ferraz, 23,
dona de uma camiseta da Forum
com a estampa de Guevara, tampouco vê conotação política na
imagem. "Não sou a favor do comunismo nem de nenhum tipo
de ditadura. Mas o Che era diferente. Ele simboliza esse espírito
solidário que eu queria muito ter,
mas muitas vezes não tenho",
conta ela, que ganhou a camiseta
em 97, época em que estava começando a ler livros sobre Cuba.
"Na época eu não tinha muita
noção desse conflito [a imagem
de um guerrilheiro comunista numa roupa de grife capitalista]. Era
apenas a camiseta de mais bom
gosto que encontrei no meio de
tanto lixo que a gente vê por aí."
"Comprei só porque achei bonita a estampa, não é porque sou fã
do Che Guevara, não!", esclarece
a arquiteta Priscilla Vianna, 30,
que adquiriu uma das peças da
Cia. Marítima na época do lançamento. Febre que exigiu da empresa uma série de reedições e novas encomendas, o biquíni foi parar ainda no corpo de tops da moda, como a brasileira Adriana Lima e a tcheca Karolina Kurkova.
"Tem quem use porque o admira e tem quem use porque é bonito", lembra Vianna, que já aposentou o biquíni.
"Idealizar o Che como um símbolo pop é desvirtuar a trajetória
dele de ícone revolucionário a algo pronto para o consumo. Vários jovens usam a imagem como
um símbolo da juventude, mas
não sabem por quê. Não conhecem as frases dele", critica o estudante Jeomark Roberto, 25.
Apesar da carteirinha de integrante do grupo União Juventude
Rebelião, nem Roberto escapa do
alcance das Guevara S.A. Mesmo
tentando seguir à risca o exemplo
de "solidariedade e coragem" do
guerrilheiro, também ele e sua
UJR vendem as camisetas de Che
pela bagatela de R$ 10.
Revolução? Quer pagar quanto?
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