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CRÍTICA
A dança de são Guido do consumo
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
O rosto que mais chama a
atenção na TV hoje não é de
nenhuma estrela da novela da
Globo, nem de nenhum desses
apresentadores do mundo cão,
nem de nenhuma gostosa-famosa que balbucia platitudes diante
das câmeras. É de Fabiano Augusto, um ator paulistano de 28
anos, que aparece nos intervalos
comerciais com gestos enfáticos
e repetitivos, esgar de psicótico,
repetindo o bordão "Quer pagar
quanto?" nos anúncios das Casas
Bahia.
Ele é um achado, de fato. Tem a
cara do seu vizinho, do caixa do
seu banco, daquele sujeito que
você encontra todo dia no caminho para o trabalho. Nos diversos anúncios que já protagonizou, ele inventou uma gesticulação característica, frenética,
olhos arregalados, sorriso congelado no rosto e toda a fala pontuada por uma movimentação
incessante de braços e mãos.
Seu papel é basicamente o do
chato, do sujeito insistente no limite da inconveniência, do cara
que mete o nariz onde não é chamado. Ele não está caracterizado
como vendedor, mas sua fala é
daquele vendedor que faz de tudo para convencer, que procura
derrubar um a um os argumentos da prudência.
Uma mulher examina um armário, uma garota olha para alguns celulares... Eis que ele aparece, feito um boneco de mola,
movendo os braços feito um maluco, num tom de voz que só por
alguns decibéis não é o do grito a
espantar quaisquer hesitações:
quer pagar quanto, quer pagar
quando?
A mensagem é clara: sim, nós
sabemos que você está sem dinheiro, mas seu engano é achar
que é preciso dinheiro para consumir nas Casas Bahia. Não, basta seu desejo de consumir, o resto
deixa com a gente. O que move o
consumo é o desejo, que rege, naturalmente, a escolha do produto, mas também, de acordo com
essa publicidade, quanto e quando pagar. Onde há desejo, há poder: "Aquilo que você quer, aqui
você pode".
O único interdito é recusar-se a
comprar, portanto, não querer
pagar nem uma prestaçãozinha
sequer, hipóteses inteiramente
afastadas com o frenesi dos movimentos do garoto-propaganda. O personagem sem nome
transfigura-se nessa dança de são
Guido do consumo, agitando-se
de comprador em comprador,
de produto em produto, como a
afirmar que não importa o tamanho da crise, a falta de dinheiro; é
preciso manter a roda do comércio em funcionamento.
O "Bahia" encarna, dá feição e
voz à histeria, parece ter tomado
todo o espaço de publicidade do
chamado horário nobre, invadido por anúncios de ofertas de hiper e supermercados, do varejão
de eletrodomésticos e móveis.
Disputando a tapas os parcos caraminguás que estão nos bolsos e
nas contas de banco dos telespectadores, a publicidade se vê desnudada de toda a sua pretensão
criativa e artística e reduzida ao
seu mínimo denominador: comprem, por favor.
@ - biabramo.tv@uol.com.br
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