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Autores franceses discutem tecnofilosofia de "Matrix" em livro
Máquinas de mitos
Divulgação
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Cena de "Matrix Revolutions', último filme da trilogia discutida no livro "Matrix Machine Philosophique', escrito sob orientação de Alain Badiou |
PHILIPPE AZOURY
DIDIER PERON
DO "LIBÉRATION"
No livro coletivo "Matrix
Machine Philosophique",
Elie During fala do filme
dos irmãos Wachowski como um objeto saturado de
referências mitológicas, religiosas, científicas, literárias e, é claro, cinematográficas. Debatendo-se numa
grande tempestade, esses
pedacinhos de cultura grega, trechos da Bíblia, mantras, Philip K. Dick, Jean
Baudrillard e Gilles Deleuze, mas também de elementos de ficção científica
e filme de kung fu, "Matrix" se apresenta como
uma cacofonia babélica. O
que se pode encontrar no
acoplamento de samples
visuais de "Matrix"?
Para começar, é claro, os
perfis dos heróis que formam o exército de sombras, vestidos de longos casacos de couro e de óculos
escuros. Eles remetem
grosso modo a tudo o que o
cinema asiático recente
conseguiu tomar de Melville, à frieza metálica e puro-sangue do Delon de "Samurai" e também aos terrores do "delirium
tremens" de Yves Montand em
"O Círculo Vermelho". Moral: na
Matrix, assim como em Hollywood, tudo é duplicável, digerível
e remixável, desde que se exagerem todos os elementos.
Vale notar que essa concretude
dos estilos de onde esses elementos vêm diz muito sobre o que resta, em última análise, de 40 anos
de modernidade cinematográfica
na qual todas as fronteiras foram
abolidas: um élan de Sergio Leone, alguns tiques melvillianos,
uma utopia de corpos nascidos
nos bazares orientais do subcinema de ação asiático. O que mais?
Um céu encharcado de eletrônicos verdes vindos de lugares tão
distantes como "Blade Runner",
de Ridley Scott, uma arquitetura
de cidade indo-futurista herdada
diretamente da "Metrópolis", de
Fritz Lang, monstros metálicos
saídos de "O Império Contra-Ataca" e os robôs de direção assistida
de "Alien 2". A reflexão sobre o
virtual inspirada nas ruminações
de Cronenberg e de toda uma
hoste de filmes que evocam a ausência de separação entre os
mundos. Apesar disso, perceberemos a invenção de um novo perfil
de personagem pálido, cabelos
molhados penteados para trás, ao
estilo Kraftwerk, as feições do rosto saltadas como as de um junkie
potencial flagrado enquanto está
chapado e em perpétuo estado de
carência. Todos esses elementos
só assumem seu valor quando são
conectados uns aos outros e fundidos no cadinho numérico.
A seguir, trechos da entrevista
com o filósofo Elie During, professor na Universidade de Paris
10-Nanterre e coordenador de
"Matrix Machine Philosophique", escrito por jovens professores de filosofia sob a orientação
ativa de Alain Badiou.
Pergunta - Por que "Matrix" é
compartilhado por uma comunidade tão grande de espectadores?
Elie During - Sem dúvida porque
é uma máquina mitológica. O filme não fabrica mitos modernos,
como fazia "Guerra nas Estrelas",
atualizando a tragédia, mas procura realizar uma operação que se
enquadra bastante bem na definição que Claude Lévi-Strauss dava
do mito: uma construção simbólica que torna equivalentes uma
multidão de códigos culturais.
"Matrix" joga sobre uma equivalência geral e, com isso, produz
um espaço para um discurso comum, um gozo comum.
Pergunta - Essa salada de filosofias não cria problemas, por exemplo, com Baudrillard condenando o
uso de sua tese sobre simulacro?
During - Justamente, seguindo
os passos dele, a maior parte da
crítica censurou "Matrix" por tratar temas intelectuais de maneira
superficial. Com isso, ela queria
falar em nome dos filósofos. Estes, excetuando Baudrillard citado na contramão, não tinham nada a censurar no
filme. Por quê? Porque, para um filósofo, "Matrix"
não é um filme filosófico.
Os irmãos Wachowski falaram de um filme "de ação
intelectual", mas, para um
filósofo, "Matrix" é bem
menos interessante quando acredita filosofar abertamente do que quando parte
para algo especificamente
cinematográfico ou coreográfico.
Pergunta - Como um filósofo se liga a "Matrix"?
During - Antes de mais
nada, evitando assumir a
postura superior de intelectual estudando um objeto
pobre e aproveitando para
dar uma lição sobre ele.
"Matrix" exige que o filósofo engrene a marcha de seu
funcionamento, que se debruce sobre a máquina, que
jogue seu jogo por inteiro.
Nos campi universitários
dos EUA e da Inglaterra,
"Matrix" provocou uma
atividade teórica e interpretativa bastante intensa. Não
se trata de saber se é a Filosofia com "f" maiúsculo,
mas de constatar a energia e o desejo teórico que "Matrix" desencadeou. Desse momento em
diante não se trata mais de enxergar Platão num filme de kung fu,
mas de introduzir o kung fu na caverna de Platão, de observar como esse filme consegue produzir
efeitos filosóficos enquanto se
movimenta, desregula, sampleia.
Tradução Clara Allain
MATRIX MACHINE PHILOSOPHIQUE.
Ed. Ellipses, 192 págs., 12 euros
(aproximadamente R$ 40). Onde
encontrar: www.alapage.com.
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