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MÚSICA
Cantora é primeira artista do gênero a lançar CD por grande gravadora
"Guerreira" Negra Li fura barreira do hip hop
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Um dia, já faz alguns anos, Liliane de Carvalho colocou sua melhor roupa e foi procurar emprego. Pensava ter se saído bem na
entrevista, até que ouviu a entrevistadora comentando entre dentes com outra pessoa: "Ah, mas
tem que ser bonita".
"Feia eu não sou, pelo amor de
Deus. Quem é preconceituoso
não enxerga a beleza do negro",
avalia hoje, quando não é mais Liliane de Carvalho, mas, sim, Negra Li. Negra Li é alta, magra, negra e bonita. Deixou de ser Liliane
ao se integrar ao movimento hip
hop, pelos braços do trio RZO, liderado por seu parceiro Hélio
Barbosa dos Santos, ou Helião.
Baiano radicado em São Paulo
desde bem pequeno, Helião, 35,
mora em Pirituba, perto de Negra
Li, 24, habitante da Brasilândia
desde que nasceu. Sempre viveram na periferia norte de São Paulo, mas hoje se locomovem também pelo centro simbólico não só
da cidade, mas do Brasil.
Negra Li é a primeira mulher do
rap a ser contratada por uma
grande gravadora (a Universal)
no país. O disco de estréia deve
sair só no final do mês, mas a música de abertura, "Guerreiro &
Guerreira", já freqüenta a novela
global das 19h, como tema de uma
personagem também de periferia,
vivida por Thalma de Freitas,
também negra, também cantora.
No final desta semana, Negra Li
e Helião inauguram a nova fase ao
vivo em grandes palcos de São
Paulo e do Rio, abrindo os shows
do rapper norte-americano 50
Cent no Brasil, no Pacaembu.
Aquela Liliane que era tida como feia por ser negra ainda mora
em Negra Li, que reage à idéia de
que as coisas vêm melhorando,
no que diz respeito ao preconceito racial. "Para mim, que sou negra, não mudou nada. Nunca vi
uma negra apresentando programa infantil na TV, as crianças ficam com a imagem de anjinho
loiro enquanto negro é só marginal e menino de rua", protesta.
Conta outro caso: "Tenho primas que são preconceituosas com
elas mesmas, acham que a beleza
branca é maior. Elas têm a pele
mais negra que a minha, dizem
"Nossa, que pele linda". Mas, puxa,
eu é que acho a pele delas linda!
Detesto quando me dizem "que
morena" na rua. Não sou morena,
eu sou negra".
Rejeição
Uma história puxa outra. Pequena, ganhou bolsa e foi estudar
em escola particular. "Eu gostava
de um menino que era negro, ele
ficava com todas as meninas
brancas, mas não comigo."
Ela não entendia, mas acaba explicando por si só a rejeição: "Falta um pouquinho de vaidade que
a gente não aprendeu a ter. A
branquinha da classe média imita
a mãe desde pequena. A gente não
aprende a se maquiar, cresce moleque, chamada de maloqueira,
sem auto-estima".
Com histórias assim povoando
seu imaginário, a ex-Liliane se esforça por não entrar num perverso conto de cinderela negra, desses de programa dominical de televisão. Ela própria tem freado a
ascensão desde ao menos 2000,
quando despertou primeiras
atenções ao participar do hit pop
"Não É Sério", do grupo santista
Charlie Brown Jr.
"Primeiro Chorão mandou
uma fita com um rap muito feio,
sem assunto definido, falei "Nossa, o que é isso?'", rememora.
Acabou criando "um espacinho"
no final de "Não É Sério".
À época dessa primeira "revelação" (na periferia, já cantava com
o RZO desde 1997), chegou a ser
procurada por gravadoras, mas
resistiu -em parte por autonomia, em parte por influência.
"Não me sentia preparada, também fui muito induzida a não ir
pelo namorado que tinha na época. O rap todo tem uma idéia de
que gravadora grande vai prender
você, tirar dinheiro de você, obrigar você a fazer o que eles querem", descreve. "Hoje me surpreende muito a liberdade que a
gravadora tem nos dado. Mas em
2000 eu era muito menina, poderia ter sido aquilo mesmo se eu
não esperasse."
Em 2000, a menina preferiu
continuar correndo atrás de si
própria. Foi estudar na escola
Groove, na rua Oscar Freire, no rico bairro dos Jardins. Seu gosto
pelo canto, adquirido na igreja
(leia texto nesta página), ajudou a
moldar um rap mais melódico, de
exposição vocal que vai além do
canto-fala do hip hop.
Algo desavisado, Helião comenta a afronta que isso pode representar: "O jovem hoje acha
meio brega cantar um Tim Maia,
um Ed Motta, um sertanejo. Cantar como Negra Li faz é mais raro". "Meu professor fala que hoje
em dia não existe mais música.
Estudo jazz, samba, MPB, é uma
escola de música e de vida", sonha
ela, na mão e na contramão.
Ainda pouco conhecida, ela
desdenha fama e sucesso com ironia, mas também com alguma irritação, ou susto. "Antes mesmo
de ser conhecida, famosa e rica, já
acontecem coisas muito chatas.
Sou uma pessoa comum que lida
com música, se num dia estou
chata ou mais quieta, então estou
chata, pronto."
Exemplo? "Já cheguei em casa
chorando muitas vezes, porque ficam me perguntando de tudo no
ônibus e eu não consigo responder direito, encerro o assunto, me
irrito. Não queria ter tratado mal,
mas depois que fiz não me sinto
bem. Mas quem disse que a gente
tem que ser sempre legal?"
Em 2004, a mudança no comportamento arredio diante de
grandes gravadoras resulta num
outro dado inusitado: admirador
de Negra Li e dos RZO, o mais arredio ainda Mano Brown participa da faixa "Periferia". "Não foi
preciso convencer, foi quase um
pedido dele para participar", gaba-se a cantora.
"Somos pretos, loucos, filho de
baiano, devotos do rap", improvisa Mano Brown ao final de "Periferia", após um refrão melódico
em que a anticinderela proclama
que "se tem algum lugar periferia
já está ganhando". Já está?
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