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CRÍTICA
A perfeição toma o lugar da lei em série
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
O cinismo é certamente uma
marca do nosso tempo e, na TV,
a plasticidade de seus formatos é
assustadora. O diabo é que muitas vezes aquilo que não passa de
cinismo em estado bruto, avançado e algo até já putrefato, é tomado por "crítico", "realista" etc.
Tome-se "Nip/Tuck", série que
estreou mês passado no canal pago Fox e já está em sua segunda
temporada nos EUA, por exemplo. Ela gira em torno de dois cirurgiões plásticos beirando os 40.
Sócios de uma clínica bem-sucedida, um deles é bonitão, solteiro, galinha, ambicioso e algo
desatento com os bisturis; o outro é sério, tem escrúpulos e problemas familiares. No formato
consagrado pelos filmes e seriados policiais, a tensão entre as
duas personalidades é o motor
das tramas.
Os conflitos entre os dois contrapõem tentativas tímidas de estabelecer limites éticos de um
com a ambição absolutamente
crua da medicina estética como
negócio do outro.
Do lado dos escrúpulos, o sujeito mediano, desprezado pelo
filho adolescente e que é um fracassado na vida sexual e amorosa, do lado da barbárie, o vencedor ao estilo norte-americano:
bem-sucedido com as mulheres
e com o dinheiro, seguro, confiante etc. Não é nem preciso dizer com qual é o personagem
mais carismático, que suscita
mais identificação etc.
O cinismo, nesse caso, faz o papel da cenoura para atrair aquela
parcela do público que se imagina acima do primarismo da TV.
Um truque e, nesse sentido, até
muito bem feito -para atrair os
espectadores que imaginam estar assistindo uma coisa, mas estão vendo o de sempre.
Há um segundo truque, e esse é
ainda mais repugnante do que as
cenas grotescas de cirurgias, outro dos atrativos da série. Como
na política externa norte-americana, é preciso se unir contra o
inimigo. Os dois médicos, em
que pesem as suas diferenças e
divergências, acabam sempre se
juntando na hora do perigo que
vem de fora. Diante do inimigo,
aquilo que um ou outro tenha
feito de errado, de mesquinho, de
cruel, desaparece, por que sempre aquele que vem de fora é
mais do mal.
É essa a ameaça que tudo explica e tudo justifica, no fundo. Não
importa que o médico mais
monstro seja sexista, irresponsável, ganancioso, porque lá fora
-e a série se passa em Miami,
uma das fronteiras dos EUA com
o "lá fora"- eles são piores. E
muito mais feios.
Sim, porque onde a série pretende ser "crítica", ou seja, na obsessão doentia do mundo moderno com a aparência, ela se torna ainda mais reforçadora de estereótipos. A cirurgia plástica é,
afinal, regida por uma série de
fôrmas narizes, seios, pálpebras,
queixos, abdomens, tudo deve se
encaixar numa forma ideal -e
de pressupostos de perfeição. Em
"Nip/Tuck", a perfeição e as fôrmas da beleza tomam o lugar da
lei e os cirurgiões são seus guardiões. Para o bem e para o mal.
biabramo.tv@uol.com.br
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