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CINEMA/"THE BROWN BUNNY"
Road movie sobre viagem de um motociclista pelos EUA escandaliza com sexo explícito
Andarilho solitário cruza o sonho americano
PAULO SANTOS LIMA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Antes de mais nada, o aviso.
"Brown Bunny", filmado e
finalizado em película, será exibido no Brasil nesta projeção digital
que vem desfigurando os filmes,
adulterando o resultado estético
pretendido por seus autores.
E em versão três minutos menor (cortada por Vincent Gallo)
que a apresentada no Festival do
Rio, em 2003 (93 min). Esta era
menor que a polêmica edição de
quase duas horas exibida em Cannes, mas continha as longas tomadas que davam densidade ao
drama do protagonista. Mais enxuto, "Brown Bunny" deixa de ser
uma obra-prima para ser, apenas,
um filme extraordinário.
Ainda assim, é um filme de longos planos, bem maiores que
qualquer outro road movie norte-americano. Bud (Vincent Gallo,
que assina da direção à montagem) é o piloto que cruza o país
numa van para levar sua motocicleta RS 250 a uma corrida. Apesar do destino claro, Los Angeles,
o roteiro de viagem soa incerto,
com um Bud errante nesta longa
cruzada, que é toda vazada por digressões deste homem.
A primeira cena do filme traduz
um pouco essa jornada a lugar nenhum. Estamos numa competição motociclística num circuito
oval. Tal geometria faz as motos
darem voltas, quase sem destino.
A câmera rastreia o evento até encontrar a motoca pilotada por
Bud. É ele, mais tarde, quem pegará a estrada, só que para uma
viagem destilada por introspecção. Uma jornada da alma.
LA, então, é apenas o ponto físico de chegada, porque Bud procura por algo além e impossível e
que está sobretudo nas lembranças que guarda de sua amada ex-mulher Daisy (Chloë Sevigny).
Ele tenta exorcizá-la com outras
mulheres que encontra no caminho, mas a comparação só aumenta sua desolação.
Num filme em que a retidão das
estradas parece dissolvida, assim
como o tempo, que se desmonta
entre presente e passado, a mais
sólida certeza do que está apresentado na tela é o corpo de Bud,
para o qual a câmera nutre uma fidelidade exemplar.
Que não a impede de também
registrar um museu iconográfico
do sonho americano: fast food,
máquinas de refrigerantes, cigarros, deserto e asfalto. Inventário
de um país que habita o imaginário coletivo. Segue, assim, caminho semelhante ao de "Gerry", no
qual Gus van Sant revisita com
igual desolação um local mítico
da antologia, o Death Valley.
É um traço de cinema moderno,
que opta sempre pela opacidade.
Porque, se a tradição do road movie é chegar a algum lugar -e, assim, a alguma certeza-, em
"Brown Bunny" a única clareza
está na memória, que nada mais é
que evidência de tempo vivido.
Não à toa a sujeira da estrada vai
se acumulando no pára-brisa da
van, como um depósito arqueológico dessa quase egotrip beatnik.
Esta câmera chega, então, via
narrativa estilhaçada, após longa
coleta pelas estradas, ao espaço fechado do quarto de hotel. É onde
acontece o tal sexo oral entre
Daisy e Bud, e a lembrar que o
hardcore explícito também faz
parte de um imaginário coletivo
proibido e, portanto, obscuro.
O pornô é, aqui, o momento revelador, dissolvendo o mistério e
celebrando o visível e o invisível,
ou seja, corpos e sentimentos. A
memória ganha contornos menos
abstratos, e daí sabemos o que
aconteceu a este casal e quão brutais são o amor e a dor de Bud.
"Brown Bunny", ele todo, celebra o tempo, traduzido na memória e na crença do plano-seqüência como captador de uma experiência. E também é revelador do
"bruto" Vincent Gallo como um
dos mais sensíveis cineastas, homem corajoso que chega ao sublime da vida até nesta triste história
do solitário Bud, que nada mais é
do que ele próprio, numa viagem
pessoal e sem destino.
Brown Bunny
The Brown Bunny
Direção: Vincent Gallo
Produção: EUA/Japão/França, 2003
Com: Vincent Gallo, Chloë Sevigny
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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