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"O SEGREDO DE VERA DRAKE"
Mike Leigh capta espírito dos anos 50
CRÍTICO DA FOLHA
Desde que Cannes se firmou
como a grande feira mundial
do cinema, o Festival de Veneza
vem marcando sua personalidade
pelo destaque dado à produção
européia e de teor mais "artístico"
do que "comercial" (as aspas entram aí por tudo de falso que pode
haver nesse tipo de classificação).
No mais, Veneza é o festival
mais próximo do Vaticano, ou seja: não há melhor lugar para enviar recados à Igreja Católica.
Talvez seja esse o motivo principal para "O Segredo de Vera Drake" ter ganhado o Leão de Ouro.
O outro: "O Segredo de Vera Drake" é um filme inglês que retoma
o tratamento extremamente carinhoso que parte desse cinema dedica à classe operária -uma tradição que deve muito a Ken
Loach e, por vias transversas, a
Margaret Thatcher.
Essa classe é representada aqui,
sobretudo, por Vera Drake, mulher bondosa, solidária, simpática, que ganha a vida na Inglaterra
do início dos anos 50 como faxineira e se dedica, nas horas vagas,
à função de aborteira, que exerce
gratuitamente, pois seu objetivo é
ajudar as garotas com problemas.
Existem traços interessantes na
construção dos personagens: a
bondade de Vera é um ponto absolutamente central, não só porque serve de referência, como
porque parece se propagar pelas
pessoas que lhe são próximas.
Haverá, claro, alguns contrapontos -e Mike Leigh paga seu tributo à construção americana, como quase todos hoje em dia. Assim, a uma Vera que faz abortos
de graça corresponde sua velha
amiga, que agencia os abortos e tira dinheiro das moças. E, se Vera
é essa Amélia, sua cunhada é uma
mulher revoltantemente fútil.
É preciso, em suma, construir
oposições, criar um pouco de vilania -e o roteiro o faz adequadamente-, menos para que a bondade de Vera se torne mais manifesta, e mais para que nós, espectadores, possamos sentir com
mais intensidade as desgraças que
a horas tantas se abaterão sobre
seus ombros.
Outros momentos do roteiro
integram-se não tão bem ao conjunto. A idéia de mostrar os "problemas" e o conseqüente aborto
de uma garota rica (no caso, filha
de uma patroa de Vera), numa clínica e com todos os cuidados, é
uma delas: parece enfiada na trama a machado, para demonstrar
a diferença entre os riscos corridos pelos ricos e pelos pobres.
A existência dessa diferença nos
países onde o aborto é proibido
-como a Inglaterra dos anos 50 e
o Brasil até os dias de hoje- é real
e dramática (para não dizer criminosa). Nem por isso dir-se-á que a
construção do filme é mais perfeita por isso.
Ressalte-se por fim a ambientação dessa Inglaterra dos anos 50,
menos pela reconstituição exterior dos eventos, e mais pela capacidade de captar o espírito de um
tempo em que conviviam o moralismo, a alegria do pós-guerra, os
perigos da era atômica. Esse é,
provavelmente, o ponto forte deste filme, no geral mais interessante pelos temas que aborda do que
pela abordagem cinematográfica
que lhes dá.
(INÁCIO ARAUJO)
O Segredo de Vera Drake
Vera Drake
Direção: Mike Leigh
Produção: Inglaterra/França, 2004
Com: Imelda Staunton, Richard Graham
Quando: a partir de hoje nos cines
Bristol, Sala UOL e circuito
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