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"CASA DE AREIA"
Fernanda Montenegro e sua filha protagonizam drama no Nordeste sobre a pequenez humana
Waddington retrata deserto maranhense como labirinto cerrado
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
À primeira vista, "Casa de
Areia" é um drama sobre
três gerações de mulheres perdidas no fim do mundo -mais precisamente, nos Lençóis Maranhenses, Nordeste brasileiro.
Mas o filme pode ser visto também como um exercício audiovisual sobre a relatividade do tempo
e do espaço. Ou sobre a pequenez
humana em face da imensidão do
cosmo.
Curiosamente, é nesses dois
planos mais "complexos" que
"Casa de Areia" parece se realizar
de modo mais cabal. No plano do
drama, é possível que o espectador ache que falta algo e não se
sinta plenamente envolvido. Mas
quem pode antever a reação dessa
entidade abstrata e fugidia chamada "o espectador"?
O fato é que "Casa de Areia" é o
filme mais pessoal e corajoso de
Andrucha Waddington. Em seus
longas anteriores -"Gêmeas",
"Eu Tu Eles" e "Viva São João"-,
a paisagem era mera moldura para uma encenação mais ou menos
televisiva, mais ou menos teatral.
Aqui, o espaço é protagonista,
agindo diretamente sobre o destino e o espírito dos personagens. Já
as primeiras cenas são eloqüentes: o que se vê antes de tudo é
uma vastidão de areia, uma paisagem desértica, lunar, onde a presença humana é prenunciada por
ruídos de uma caravana.
Só depois começam a aparecer,
como pontos indistintos, entre
animais igualmente indistintos,
os personagens conduzidos pelo
ensandecido Vasco (Ruy Guerra).
Entre eles, estão sua mulher grávida, Áurea (Fernanda Torres), e a
mãe desta, Maria (Fernanda
Montenegro).
É uma abertura esplêndida, que
faz lembrar os inícios de filmes de
Werner Herzog.
Nas seqüências seguintes, a caravana se dispersará (não convém
aqui dizer como) e sobrarão apenas mãe e filha. Da gravidez de
Áurea nascerá Maria, e as duas
Fernandas passarão a se revezar
nos papéis das três gerações de
mulheres.
Perto de onde elas se instalam,
num casebre condenado a ser soterrado mais cedo ou mais tarde
pela areia, há uma comunidade
de pescadores negros, descendentes de um quilombo. A ação começa em 1910 e termina em 1969,
segundo se deduz de várias informações indiretas.
Pois um dos méritos de "Casa
de Areia" é o de não mastigar as
coisas para o público. Não há narração em "off", não há letreiros
explicativos, não há diálogos redundantes. E sobretudo não há
música rebarbativa, indutora de
emoções.
Naquele mundo inóspito, imperam a elipse e o silêncio, rompido
de quando em quando pelo uivo
do vento. Respeita-se, assim, a
sensibilidade do espectador, sua
capacidade de preencher os espaços vazios com a própria imaginação -coisa rara no atual cinema
brasileiro.
Há uma atmosfera de Gabriel
García Márquez no destino insólito dessas mulheres. A própria repetição dos nomes Maria e Áurea
remete aos Aurelianos e Josés Arcadios de "Cem Anos de Solidão".
Mas o fantástico permanece
apenas como possibilidade não
realizada. Waddington mantém-se firme na senda do realismo e de
uma certa verossimilhança.
Talvez resida aí o calcanhar-de-aquiles do filme: é possível que o
espectador contemporâneo resista a acreditar que aquelas mulheres não conseguiam sair daquele
buraco -assim como talvez seja
difícil acreditar em Luiz Melodia
(ótimo no papel do pescador
Massu na maturidade) como cônjuge de Fernanda Montenegro,
dada a diferença de idade entre o
cantor e a atriz.
Se essas coisas são problemas,
são problemas menores, mesmo
que porventura dificultem o êxito
comercial do filme.
Jorge Luis Borges escreveu,
num conto, que o deserto é o pior
dos labirintos, porque dele não
existe saída. É essa idéia que Waddington construiu visualmente:
um labirinto horizontal (enfatizado pelo cinemascope), onde "o
que não é chão é céu", como diz
Fernanda Torres a certa altura, e
onde os únicos pontos de referência verticais, não raro ínfimos, são
as figuras humanas.
O que dá pleno sentido ao longa-metragem, entrelaçando o
drama humano e a especulação filosófica, é a subtrama dos astrônomos que vão aos Lençóis Maranhenses fotografar estrelas durante um eclipse.
O diálogo entre Áurea e o romântico militar que conduz a expedição científica (Enrique Diaz)
ecoa na conversa final entre mãe e
filha e ilumina retrospectivamente tudo o que vimos: uma talvez
defeituosa, mas muito bela, representação da idéia de que cada ser
humano é um mundo, mas esse
mundo, na escala do universo, é
um magnífico nada.
Casa de Areia
Direção: Andrucha Waddington
Produção: Brasil, 2005
Com: Fernanda Montenegro, Fernanda
Torres, Luiz Melodia
Quando: a partir de hoje nos cines Frei
Caneca Unibanco Arteplex, Villa-Lobos e
circuito
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