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ANÁLISE
Competição toca em ferida do Iraque com recortes diferentes
PEDRO BUTCHER
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
Os dois filmes exibidos ontem
na competição apresentaram uma rima curiosa. Com
abordagens radicalmente diferentes, ambos tocaram em uma
das maiores feridas contemporâneas: a situação do Iraque.
"Kilomètre Zéro", de Hiner Saleem, é tecnicamente o primeiro
filme iraquiano a concorrer em
Cannes, apesar de o diretor viver
na França há anos e de sua abordagem voltar-se, especificamente,
para a situação dos curdos -povo violentamente oprimido pela
ditadura de Saddam Hussein.
Já em "Bashing", de Masahiro
Kobayashi, representante do Japão, o Iraque surge de maneira indireta, mas interessantíssima. O
diretor inspirou-se em fatos reais
para falar da rejeição sofrida pelos
japoneses que serviram como voluntários na Guerra do Iraque, depois que eles voltaram ao Japão.
É difícil para nós, ocidentais,
compreender o que se passa com
a jovem Yuko (Fusako Urabe),
personagem central do filme.
Quando "Bashing" começa, já faz
seis meses que ela tenta retomar a
vida em seu próprio país, depois
de um período traumático sob a
custódia de seqüestradores no
Iraque. Mas essa readaptação revela-se ainda mais traumática.
Yuko recebe telefonemas anônimos agressivos, é tema de uma
campanha difamatória na internet e chega a sofrer ataques físicos
na rua. Depois de perder o emprego como arrumadeira em um hotel, seu pai é "convidado" a se demitir de seu emprego, o que é motivo de profunda humilhação.
Tudo isso porque, para os japoneses, o trabalho voluntário não é
sinônimo de bondade, mas de fracasso. Um voluntário que ainda
por cima é seqüestrado, forçando
o país a tomar medidas complexas e caras, é visto como um estorvo incalculável, motivo de desprezo e de vergonha.
Triste a perder de vista, o longa é
duro sem perder a ternura. Kobayashi -que tem 50 anos e foi assistente de François Truffaut-
apresenta o problema de ser diferente em uma sociedade provinciana e rígida como a japonesa
sem desfilar veredictos morais.
Em certo sentido, seu filme é
muito parecido com "Ninguém
Pode Saber", de Hirokazu Kore-eda, que representou o Japão na
competição do ano passado.
Ao lado da surpresa e da complexidade de "Bashing", "Kilomètre Zéro" é apenas um filme digno
e politicamente correto. A maior
parte da ação se passa em 1988,
durante a guerra Irã-Iraque.
Acompanhamos a saga de Ako
(Nazmi Kirik), que precisa levar o
corpo de um soldado morto em
combate de volta à casa de sua família. Mas o carro, que carrega
um caixão no topo, é proibido de
circular durante o dia para não
"desanimar" a população. O culto
à personalidade de Saddam Hussein e a perseguição aos curdos
são expostos a todo o momento.
Mas todas as escolhas e recortes
temporais feitos por Hiner Saleem ("Vodka Lemon") parecem
um tanto manipuladores. Tudo se
posiciona no sentido de fazer crer
que a libertação do regime de Saddam foi uma dádiva dos céus e
"apesar do passado trágico, há todo um futuro pela frente", como
sugere no diálogo final.
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