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CARLOS HEITOR CONY
O poder da faca em relação ao queijo
Não fica bem recorrer ao lugar-comum, mas ele é inevitável, sobretudo quando revela
uma verdade que todos admitem.
É o caso de relembrar que a democracia é o pior dos regimes políticos, exceto os demais. Ao se integrar em grupos, tribos e, mais
tarde, em sociedades, o homem
buscou uma forma de sobreviver
com um mínimo de conflitos e um
máximo de bem-estar. Experimentou a autogestão, o governo
de conselhos, de casta, de elite, experimentou a anarquia e a ditadura.
Tanto no Oriente como no Ocidente, as tentativas de encontrar
a forma de poder ideal fracassaram diante da hegemonia dos
mais fortes, que detinham o poder
da força, ou dos mais sábios, que
dominavam o poder do conhecimento.
Recorre-se aos gregos, tidos e
havidos como inventores da democracia, para datar os começos
de um regime político e social que
viesse do povo e para o povo. Muito discutida a primazia helênica,
que teria produzido uma sociedade perfeita apesar de manter escravos e de ser obrigada a guerras
permanentes entre suas cidades.
Pulando no tempo, mas sem
deixar o mundo formado em torno do Mediterrâneo, de onde todos nós, ocidentais, viemos, houve
as numerosas e contraditórias
etapas do predomínio de Roma
no pensamento e na ação do homem, etapas que atingiam, de
certo modo, uma forma de gestão
pública que poderia ser considerada moderna, em oposição aos
conceitos ultrapassados das civilizações anteriores. Criou-se uma
República, que foi substituída por
um Império. Criou-se também a
mistura de deus e de tirano, na figura do imperador. Mas havia
um Senado e um povo. Até hoje,
nos tampões de ferro que protegem as canalizações subterrâneas
da Roma contemporânea, estão
gravadas as iniciais que tremulavam nos estandartes das legiões
que conquistavam o mundo:
SPQR, "Senatus Populusque Romanum", o Senado e o Povo de
Roma.
Nascia, embrionariamente, a
noção de povo como gestor da sociedade e, eventualmente, como
gestor de si mesmo. O longo período da decadência de Roma, as invasões dos bárbaros que vinham
das retaguardas do Danúbio e do
Reno, criariam a longa Idade Média, com o retrocesso de uma ordem que repetia os fundamentos
das sociedades antigas: o rei, a
nobreza e o resto -o resto se referindo ao povo.
Esquematicamente, essa ordem
feudal predominou até a Revolução Francesa. Na Inglaterra, país
que produzira a Carta Magna e
uma forma também embrionária
de democracia, havia o rei, a Câmara dos Lordes, a Câmara dos
Comuns, que, de certa forma, representavam o povo, mas o povo
dividido entre nobres e plebeus, o
que dava na mesma exclusão do
povo.
Foi na Convenção Francesa,
eleita e formada por cidadãos,
que se deu o poder de governo e
da lei ao terceiro Estado, até então servo ou escravo da nobreza e
do clero. Nem tudo foi tranqüilo e
coerente no seio de uma assembléia que pela primeira vez se dividiu, literalmente, em esquerda e
direita, de acordo com os assentos
do plenário em face da mesa diretora. De qualquer forma, conservadores e liberais não nasciam do
nada, das simples conveniências
de classe: todos traziam na testa o
sinete do povo, povo dividido,
sim, mas povo. Robespierre e
Danton, que poderiam representar grosseiramente a direita e a
esquerda da época, tiveram o pescoço decepado pela mesma guilhotina que cortara a cabeça do
monarca deposto.
Democracia seria isso, um banho de sangue estéril que devoraria a todos? Era preciso criar, dentro do sistema político e social de
um Estado moderno, não um senado do feitio da Roma Imperial,
muito menos de uma convenção
movida a paixões e vendetas pessoais ou de classe.
O núcleo do poder, o povo, foi
dividido em três expressões que
formam hoje as democracias modernas. O Executivo é o mais ambíguo: por meio de alianças e
pressões, empolga os poderes restantes, nomeando o Judiciário e
barganhando com o Legislativo.
Por sua vez, o Judiciário, que
em tese seria o mais isento dos
três, sem paixões nem conveniências de tempo e modo, por definição se limita a interpretar e a
aplicar leis que não fez e das quais
muitas vezes discorda. Ao longo
da história, muitas vezes o Judiciário é mantido em regimes autoritários e nada pode fazer além
de cumprir a estrutura legal que
dá suporte ao tirano.
O Poder Legislativo foi criado
para dar régua ao Executivo e
compasso ao Judiciário. Por isso
mesmo é criticado, com diferentes
cotas de razão e oportunidade. É
o Poder desarmado e de exposição permanente diante do povo
que o elege e o integra.
É perfeito em definição e imperfeito em sua ação, uma vez que
expressa os conflitos, os equívocos
e até mesmo os erros de uma sociedade. Diferentemente do Executivo, que tem a faca e o queijo
na mão, e do Judiciário, que arbitra o uso da faca e do queijo, o Legislativo absorve a ambigüidade
estrutural de ser metade poder e
metade povo, dificilmente se realizando como uma ou outra coisa.
E geralmente é mais queijo do
que faca.
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