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"FOLHA EXPLICA CHICO BUARQUE"
Ensaio capta a utopia e a dor do Brasil que não somos
HELOISA MARIA MURGEL STARLING
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em poema muito conhecido,
"Hino Nacional", publicado
ainda em 1934, Carlos Drummond de Andrade já se encarregava de evocar uma via própria à
imaginação social e política brasileira, que insiste em apontar a
persistência de uma zona de hesitação, inconsistência e indefinição, de um enredo problemático
onde fica presa a construção da figura nacional, perenemente extraviada entre o exótico e o singular, entre autonomia e dependência, entre imagem e simulacro,
entre modernidade e arcaísmo:
"Nenhum Brasil existe. E acaso
existirão os brasileiros?".
Cerca de meio século passado, o
que torna o livro de Fernando de
Barros e Silva, editor de Brasil,
"Chico Buarque", um dos melhores trabalhos já escritos sobre a
obra do artista é precisamente o
esforço de trazer à tona, como fio
unificador de uma obra imensa e
variada, o projeto de construção
de uma narrativa musical e literária sobre os descompassos dessa
nacionalidade permanentemente
deslocada, sempre em trânsito,
sempre distante daquilo que é comum. Descompassos que na obra
de Chico vão contaminando os
princípios formadores da sociedade brasileira até hoje.
Organizado sob a forma do ensaio, "Chico Buarque" é construído em torno de uma idéia: tentar
desvendar em palavras e imagens
a metáfora de Brasil implícita na
produção do artista. Essa capacidade de dizer o país dentro de
uma perspectiva não convencional, argumenta Barros e Silva, está
constituída sempre a partir das
margens, num deslocamento de
significado, por exemplo, entre o
que virá e não vem, entre o que é
tão recente que permanece à espera de conclusão, tão deteriorado que também não conseguiu
envelhecer. Ou ainda, entre o que
poderia ter sido e que, por falta de
história, coube à imaginação do
artista inventar.
Por vezes mergulhada num desalento trágico, por vezes imersa
numa esperança de felicidade que
aqui permanece como incógnita,
a aventura nacional brasileira se
deposita e se revela nas canções e
na literatura de Chico, ambas dotadas de um rigor formal incomum, com todo seu potencial de
utopia e toda a dor do Brasil que
não somos, chão de desterro, pátria em abandono.
Talvez não por acaso o caminho
adotado pelo livro seja o ensaio. A
rigor, ensaios são uma forma de
exposição que desconfia do sentido definitivo ou único dos acontecimentos e das idéias, apresentado pela teoria ou pela história,
perseguem as condições de acesso
ao que neles foi preterido, eclipsado ou anulado como inútil, e reconhecem o heterogêneo, o dissonante, ou fragmentário como um
método para interrogar o presente.
Visto pelo ângulo do ensaio, interpretar, ainda que parcialmente, a produção artística de Chico,
como procura fazer Barros e Silva,
significa, por exemplo, ingressar
em canções carregadas de interpelações sobre o passado recente
do país, canções que funcionam
como uma fantástica abreviação
narrativa fisgada pela melodia e
que, quando ouvidas, acarretam
uma espécie de auxílio, não pragmático, não utilitário, para elaboração de uma certa imagem comum do país que possa ser válida
para seus habitantes.
De certo modo, então, na leitura
de Barros e Silva, o alvo dessas
canções é a história, e o projeto da
obra do artista inclui repensar de
maneira radical, isto é, pela raiz,
como é próprio à genealogia dos
Buarque, Sérgio e Francisco, as
questões sem resposta apresentadas pela história contemporânea
brasileira. Nessa leitura, a produção artística de Chico carrega dobrada dentro de si o horizonte da
utopia que se desenhou no país
principalmente durante a década
de 50 e o início dos anos 60: a expectativa de afirmação de uma
nacionalidade comprometida
com um amplo programa democrático e modernizador, disposto
a produzir mecanismos de integração dos brasileiros ao tempo
da modernidade, a estimular o
desejo de integração do interior
ao centro, do Brasil ao mundo, da
tradição à modernidade.
Contudo essa obra carrega também, e simultaneamente, o espanto e a impotência de seu autor
diante do desmanche desse Brasil
meio singelo, abortado pelo golpe
militar de 1964. No seu lugar, frustra-se o compositor, plantou-se
uma figura nacional ufanista, militarizada e intimidante, fez-se um
país de silêncio imposto, solidão e
medo.
Mas o ensaio de Barros e Silva
vai além: a obra de Chico também
carrega consigo o avesso da utopia nacional-populista e de seu esforço ingênuo em modernizar o
país procedendo à síntese apressada e artificial entre povo e nação. O Brasil que ressurge democratizado, a partir dos anos 80, é
um país paradoxal mergulhado
no reconhecimento da legitimidade dos valores, das instituições,
dos princípios e das escolhas que
conformam o repertório democrático e republicano da modernidade e, ao mesmo tempo, incapaz
de ampliar o acesso aos frutos sociais gerados pela introdução da
democracia política.
Por conta desse paradoxo, hoje,
tudo está por um triz: a malandragem assume na corrupção sua
forma moderna, anônima e institucional, o sonho de uma civilização brasileira parece perder-se
em um cenário de indivíduos privados, cínicos, desinteressados do
mundo público e desprovidos de
responsabilidade perante seus semelhantes.
Algo se perdeu e no entanto permanece ainda que sem pouso certo, mais uma vez em trânsito. A
percepção dessa dialética de limiar fundando a obra de Chico
num lugar, invariavelmente instável e incerto, onde uma passagem
se constrói e onde o Brasil sempre
está por fazer-se, traduz a surpreendente inventividade do ensaio de Fernando Barros e Silva.
Traduz, igualmente, a astúcia da
engenharia do autor: no seu livro,
como, de resto, em toda a produção artística de Chico Buarque,
canções e romances também tratam de citar uns aos outros e, na
oportunidade da citação, apresentam o virtual que flui sob a superfície de compreensão do texto
factual, do traço historicista da
obra, deixando ainda mais evidentes os diversos nós temáticos
por onde Chico parece fazer o esforço de "escrever a história duas
vezes, nos revelando o que somos
e aquilo que não nos tornamos".
São apenas histórias contadas
por um narrador de periferia, de
"fim de feira" feito Chico, que deixam suspensas no tempo os sons
do que foi abandonado, eclipsado, anulado na aventura nacional
brasileira. Uma espécie de sons
onde estão inscritos os traços de
uma vida compartilhada por todos e onde os caminhos de vivência comum se cortam, se encontram e se extraviam fortuita e incessantemente. Nesses sons, a
memória do Brasil se agasalha e
deles nasce o país sobre o qual se
conta uma história, sobre o qual
Chico pode compor uma canção
ou fazer dele uma canção.
"Sambando na lama e causando
frisson."
Folha Explica Chico Buarque
Autor: Fernando de Barros e Silva
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 19,90 (184 págs.)
Heloisa Maria Murgel Starling é professora de história das idéias na Universidade Federal de Minas Gerais e uma das organizadoras do livro "Decantando a República: Inventário Histórico e Político da Canção Popular Modena Brasileira" (ed. Nova Fronteira, Fundação Perseu
Abramo, Faperj - 2004)
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