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"Guru" completa 40 anos de fábulas e reúne uma centena delas em livro
Esopo do Rio
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Lobo em pele de cordeiro, o raposa Millôr Fernandes viu desde
cedo um saboroso e abandonado
cacho de uvas quase caindo da árvore. Era o esquecido gênero das
fábulas, de Esopo e La Fontaine.
Formiga disfarçada de cigarra, o
chamado "guru do Méier" foi
mais rápido do que a lebre ou a
tartaruga e começou a trabalhar
nesse estilo de historietas até que
lançou, redondas quatro décadas
atrás, o livro "Fábulas Fabulosas".
Moral da história, o humorista-dramaturgo-tradutor-desenhista-frasista acabou por virar também o grande fabulador nacional.
Agora, aos 78 anos, Millôr resolveu fazer uma reunião de condomínio com todo o seu zoológico
fabular. Juntou leões e ratos, bodes e burricos, deuses gregos e políticos maranhenses e saiu de lá
com uma centena de alegorias.
O resultado está no livro "100
Fábulas Fabulosas", que esse "irmão Grimm" carioca (e amoral)
lança pela editora Record.
Algumas historietas já andavam
por aí em velhas brochuras esgotadas, outras estavam em seu "saite", o www.millor.com.br, mas a
parte mais polpuda dessa centena
de alegorias nunca tinha saído do
escritório do criador.
Milton, digo Millôr (um tabelião desastrado, diz uma fábula,
lhe deu esse nome que não tem
par), também não é muito de sair
do escritório. Pelo menos não para entrevistas. Mas o autor de frases como "a informática criou
uma coisa realmente maravilhosa: erros cada vez maiores cometidos em espaços de tempo cada
vez menores" -"Millôr Definitivo" (editora L&PM)- topou bater papo por e-mail com a Folha.
Começou afirmando que não
lembrava de quando iniciou-se na
arte da fábula ("A primeira que
ouvi foi Noé quem contou, no
meio do porre comemorativo") e
terminou se mostrando um cordeiro em pele de lobo. Contrariando a fama de rabugento, pôs
ponto final na conversa com um
"sou indecentemente feliz". Leia a
seguir trechos da entrevista.
Folha - Por que você chama de
"fabulosas" as fábulas que faz há
40 anos?
Millôr Fernandes - Tenho a vaga
impressão de que é só trocadilho.
Folha - "Só" por que, Millôr? (pergunta sugerida pelo entrevistado)
Millôr - O trocadilho não é "a
mais baixa forma de humor", como querem trocadilhistas idiotas.
Cristo, que possuía a graça divina,
fez a base de sua igreja com um
trocadilho: "Pedro, tu és pedra, e
sobre ti edificarei a minha igreja".
Folha - Existe algum fabulador vivo que você considere fabuloso?
Dos que não confabulam mais, Esopo, La Fontaine ou até Italo Calvino, quem é mais de seu agrado?
Millôr - Somos 6 bilhões de seres
humanos, todos mentindo e, portanto, fabulando. Não conheço
Calvino. Esopo e La Fontaine hoje
são, pra mim, tias velhas.
Folha - La Fontaine escreveu sobre Esopo: "A leitura de suas obras
espalha na alma, sem que se sinta,
as sementes da virtude, ensinando-nos a nos conhecer sem que disto nos apercebamos, crendo até
que estejamos fazendo outra coisa
inteiramente diversa". Você acha
que suas fábulas ensinam o autoconhecimento sem que disso se
aperceba o leitor?
Millôr - Virtude? Eu, hein? Tias
velhas, eu já disse. O único autoconhecimento que conheço é o
das escolas de motoristas.
Folha - Existe fábula sem a moral?
Millôr - Sem moral não há fabula. Explícita ou implícita. As minhas são devidamente incorretas.
Sempre foram assim porque eu
sou absolutamente correto. Se é
que você me entende.
Folha - Com o que é mais difícil fazer uma fábula: animais, personagens da mitologia, políticos...?
Millôr - Nada é mais difícil. Dificuldade de escrever é coisa pra
quem não sabe escrever. Ou melhor, frescura. Difícil é traduzir o
"cockney" de (Bernard) Shaw,
botar em português compreensível, mas em linguagem que o público sinta como "cockney".
Folha - Por que suas fábulas são
em maior parte em terra estrangeira, sempre ambientados entre chineses, árabes, tibetanos...?
Millôr - Estranheza. Efeito. Mas
não é intencional. É instintivo.
Folha - Você usa enredos de fábulas alheias para construir as suas
ou você é sua própria galinha dos
ovos de ouro? Você recicla fábulas
suas mesmo em outras fábulas?
Millôr - Vale tudo. Fábulas já
existentes, fatos "fabulosos", piadas. É evidente que tudo tem que
ser feito com aquilo que se chama
qualidade "literária". Enfim, tudo
vale a pena quando a alma é pequena, como diria um cafajeste.
Folha - O repórter Jayson Blair, do
"New York Times", fez um estardalhaço quando disse recentemente
que inventava boa parte de seus
textos. Em seus tempos de Redação
você fazia fábulas desse tipo?
Millôr - Não. E não vou falar do
conluio já denunciado racista ao
contrário dentro do "Times" porque nós todos sabemos que não
existe nenhum negro desonesto.
Folha - La Fontaine, inimigo do
violento Luís 14, criou um fabulário
em que muitas vezes a coisa terminava com a paz, inclusive entre animais inimigos. As suas fábulas não
são propriamente pacifistas. Suas
alegorias são impermeáveis ao dia-a-dia turbulento do Rio?
Millôr - Vou te responder estranhamente: vivo na melhor época
da história da humanidade.
Folha - La Fontaine aproximou-se
na velhice da Igreja, renegou seus
contos e se voltou às penitências.
Você tem algum plano parecido?
Millôr - Meu destino não passa
pelo poder, pela religião, por
qualquer dessas entidades idiotas.
Meu script é original, fui eu quem
fiz. Por isso eu não morro no fim.
Folha - Que é que você anda fazendo atualmente?
Millôr - Existindo.
Folha - Qual a moral desta entrevista "fabulosa"?
Millôr - Eu sou indecentemente
feliz.
100 FÁBULAS FABULOSAS. Autor:
Millôr Fernandes. Editora: Record.
Quanto: R$ 28 (216 págs.)
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