São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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Jean-Luc Godard, 73, comenta "Notre Musique", seu último filme, que será mostrado em Cannes na terça

"Sou um judeu do cinema"

JACQUES MANDELBAUM
THOMAS SOTINEL
DO "LE MONDE"

Por uma feliz coincidência, no momento em que a União Européia se amplia e o cinema se pergunta onde a Europa começa e onde acaba, Jean-Luc Godard, 73, foi a Sarajevo, onde dirigiu "Notre Musique" [Nossa Música], filme grave e otimista. Ele relembra a origem do trabalho e evoca sua serenidade reconquistada em uma cidade deprimida, que espera a reconstrução.

 

Pergunta - Três anos atrás, em Cannes, o sr. disse que já tinha o título para "Notre Musique".
Jean-Luc Godard -
Desde "Acossado", sempre sei com antecedência o título do meu próximo filme. Quer se trate de um bastão ou de uma cenoura, o asno caminha naquela direção. É uma indicação, um som. O que importa é o que se faz para que o trabalho possa ter esse nome.

Pergunta - Por que dividir o filme em Inferno, Purgatório e Paraíso?
Godard -
É uma idéia que compartilho com Anne-Marie Miéville, a de produzir triplos: um passado, um presente, um futuro; uma imagem, uma outra imagem e a seguinte, que chamo de verdadeira imagem, a terceira pessoa como na Trindade. E à terceira pessoa eu chamo imagem, aquela que não se vê e que deriva do que se viu e do que se verá. E, quando estive em Sarajevo, era claro que eles estavam no Purgatório. Haviam passado pelo Inferno, estavam no Purgatório, e o Paraíso eu não sei se conquistarão.

Pergunta - Quais foram os princípios de realização do Inferno, uma montagem de imagens de guerra?
Godard -
Tenho sempre medo de não poder filmar mais que uma hora e 20. Assim, tendo uma hora de Purgatório, pensei que faltavam dez minutos antes e dez minutos depois. Para o Inferno, é tempo demais, dez minutos de planos documentais, e por isso dividimos o segmento em quatro pequenos momentos, o que fica mais fácil se comparado a produzir dez minutos contínuos. A primeira parte trata de guerras; a segunda, da tecnologia, dos tanques, aviões, navios; a terceira lida com as vítimas, principalmente; e a quarta traz imagens de Sarajevo durante a guerra, para introduzir o Purgatório.

Pergunta - Como o senhor decidiu misturar imagens documentárias e de ficção?
Godard -
Para mim não faz muita diferença, se você quer ver um casal se abraçando, que a origem seja um documentário ou um filme de ficção. Pensei no filme "A Morte num Beijo" (1955), de Robert Aldrich, e em usar imagens de Hiroshima destruída, porque o filme de Aldrich era uma metáfora sobre a bomba atômica, na época.

Pergunta - E o seu desejo de visitar Sarajevo?
Godard -
Estive lá uma ou duas vezes, convidado para os Encontros do Livro, e disse para mim mesmo que aquele era o local certo para o filme. Eu preferi, por medo ou por espírito de contradição, chegar quando o fogo já estava extinto, mas a cinza cobria toda a cidade, ninguém tinha voltado. O entorno mesmo estava abandonado, estéril.

Pergunta - O senhor registrou os Encontros do Livro em Sarajevo. Como trabalhou com os escritores envolvidos?
Godard -
Juan Goytisolo participou de três edições. Havia autores desconhecidos cuja prosa me interessou ou comoveu. E tínhamos também Mahmoud Darwich, por ocasião de um encontro Israel-Palestina, que eu não quis transformar em elemento principal do trabalho. Eu tentei tratar todos igualmente, ser democrático, em ficção e documentário, verdadeiro ator e falso ator ou não ator, e eu interferindo como convidado.

Pergunta - É quase um elogio da escrita.
Godard -
Sim, o elogio da escrita por seu mais ferrenho adversário. Mas é só a um uso da escrita que me oponho, aquele que recusa igualdade à imagem.

Pergunta - Será que se pode discernir um certo desencanto, no início do filme infernal, quanto ao tom de sua lição de cinema?
Godard -
De certa maneira. Mas eu sou um cidadão normal, que se desencantou com diversas coisas. Quando envelhecemos, nos desencantamos paulatinamente, mas ao mesmo tempo nos encantamos com outras coisas que a idade nos traz.

Pergunta - Três personagens judeus, é muito para um filme.
Godard -
Eu sou o quarto, sou um judeu do cinema.

Pergunta - De onde vem a importância que o sr. confere cada vez mais ao destino judaico?
Godard -
Eu aprendi aos poucos, lendo aqui e ali, e terminei por encontrar correspondências. Mas no fundo jamais consegui saber o que significa ser judeu. O único meio de compreender o ser judeu seria o de me ver como um deles: quero estar com os outros, mas quero continuar sem os outros. Isso me afeta pessoalmente.

Pergunta - Que sentido o sr. confere à comparação que faz no filme, com base em duas fotos de detentos de campos nazistas, entre o judeu e o muçulmano? De onde vêm as fotos que servem para essa comparação?
Godard -
A primeira é conhecida, é a foto de um detento de olhos arregalados, que acredito ter sido tirada quando os campos foram liberados. A outra mostra um deportado cujo fim, pode-se sentir, é iminente. São esses últimos, os que chegaram à morte por esgotamento físico, que eram conhecidos nos campos como "muçulmanos". Eu sempre quis entender de que maneira os alemães terminaram classificando os judeus como "muçulmanos". E aí me ocorreu a idéia de que foi ali que começou o conflito do Oriente Médio. Temos um apartamento, e alguém chega e diz: "Deus me escolheu para ocupar esse apartamento, a partir de agora".

Pergunta - Não é perigoso sugerir, como o senhor faz, um paralelo entre o extermínio dos judeus e o exílio palestino que se seguiu, no conflito do Oriente Médio?
Godard -
Com certeza refleti muito, ao colocar as duas coisas lado a lado. Mas por que ninguém, nem os judeus, nem os palestinos, fez essa comparação? E eu, ao fazê-lo, não estava pensando: estava agindo como cientista que aproxima elementos. Normalmente as pessoas preferem falar a ver. Mas eu proponho que encaremos as imagens. Melhor ver primeiro e falar depois.

Pergunta - O poeta diz que "ter Israel como inimigo é o nosso azar, porque os judeus são o centro do mundo". Como o sr. entende essa idéia segundo a qual o povo judeu, pária das nações por 20 séculos, é o centro do mundo?
Godard -
O que quer dizer "centro do mundo"? Eu entendo o que ele quer dizer. Há entre os israelitas algo de muito original, mas nessa originalidade eles introduziram a idéia de origem. A origem no sentido de serem os primeiros. Eles teorizam nesse sentido, e é, portanto, normal que certas coisas tenham acontecido como aconteceram. E é porque aconteceram que eles podem teorizar.

Pergunta - Passemos do centro do mundo aos donos do mundo, os norte-americanos, que são também, em seu filme, os guardiões do Paraíso.
Godard -
Isso não é invenção minha. Todo mundo me aponta como anti-americano, mas é preciso saber que isso está lá, nos dois últimos versos do hino dos fuzileiros navais, e repetido cem vezes em Ford e em Hawks. Como eu poderia tê-lo inventado? Os norte-americanos querem tudo... Há muita terra no continente americano, mas por que só aquele pedaço se chama América? Os EUA bem o sabem, é o nome de um país sem terra, de gente sem terra, e por isso é preciso que a procurem em outras paragens.


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