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Jean-Luc Godard, 73, comenta "Notre Musique", seu último filme, que será mostrado em Cannes na terça
"Sou um judeu do cinema"
JACQUES MANDELBAUM
THOMAS SOTINEL
DO "LE MONDE"
Por uma feliz coincidência, no
momento em que a União Européia se amplia e o cinema se pergunta onde a Europa começa e
onde acaba, Jean-Luc Godard, 73,
foi a Sarajevo, onde dirigiu "Notre
Musique" [Nossa Música], filme
grave e otimista. Ele relembra a
origem do trabalho e evoca sua
serenidade reconquistada em
uma cidade deprimida, que espera a reconstrução.
Pergunta - Três anos atrás, em
Cannes, o sr. disse que já tinha o título para "Notre Musique".
Jean-Luc Godard - Desde "Acossado", sempre sei com antecedência o título do meu próximo filme.
Quer se trate de um bastão ou de
uma cenoura, o asno caminha naquela direção. É uma indicação,
um som. O que importa é o que se
faz para que o trabalho possa ter
esse nome.
Pergunta - Por que dividir o filme
em Inferno, Purgatório e Paraíso?
Godard - É uma idéia que compartilho com Anne-Marie Miéville, a de produzir triplos: um passado, um presente, um futuro;
uma imagem, uma outra imagem
e a seguinte, que chamo de verdadeira imagem, a terceira pessoa
como na Trindade. E à terceira
pessoa eu chamo imagem, aquela
que não se vê e que deriva do que
se viu e do que se verá. E, quando
estive em Sarajevo, era claro que
eles estavam no Purgatório. Haviam passado pelo Inferno, estavam no Purgatório, e o Paraíso eu
não sei se conquistarão.
Pergunta - Quais foram os princípios de realização do Inferno, uma
montagem de imagens de guerra?
Godard - Tenho sempre medo
de não poder filmar mais que
uma hora e 20. Assim, tendo uma
hora de Purgatório, pensei que
faltavam dez minutos antes e dez
minutos depois. Para o Inferno, é
tempo demais, dez minutos de
planos documentais, e por isso dividimos o segmento em quatro
pequenos momentos, o que fica
mais fácil se comparado a produzir dez minutos contínuos. A primeira parte trata de guerras; a segunda, da tecnologia, dos tanques, aviões, navios; a terceira lida
com as vítimas, principalmente; e
a quarta traz imagens de Sarajevo
durante a guerra, para introduzir
o Purgatório.
Pergunta - Como o senhor decidiu misturar imagens documentárias e de ficção?
Godard - Para mim não faz muita diferença, se você quer ver um
casal se abraçando, que a origem
seja um documentário ou um filme de ficção. Pensei no filme "A
Morte num Beijo" (1955), de Robert Aldrich, e em usar imagens
de Hiroshima destruída, porque o
filme de Aldrich era uma metáfora sobre a bomba atômica, na
época.
Pergunta - E o seu desejo de visitar Sarajevo?
Godard - Estive lá uma ou duas
vezes, convidado para os Encontros do Livro, e disse para mim
mesmo que aquele era o local certo para o filme. Eu preferi, por
medo ou por espírito de contradição, chegar quando o fogo já estava extinto, mas a cinza cobria toda
a cidade, ninguém tinha voltado.
O entorno mesmo estava abandonado, estéril.
Pergunta - O senhor registrou os
Encontros do Livro em Sarajevo.
Como trabalhou com os escritores
envolvidos?
Godard - Juan Goytisolo participou de três edições. Havia autores
desconhecidos cuja prosa me interessou ou comoveu. E tínhamos
também Mahmoud Darwich, por
ocasião de um encontro Israel-Palestina, que eu não quis transformar em elemento principal do
trabalho. Eu tentei tratar todos
igualmente, ser democrático, em
ficção e documentário, verdadeiro ator e falso ator ou não ator, e
eu interferindo como convidado.
Pergunta - É quase um elogio da
escrita.
Godard - Sim, o elogio da escrita
por seu mais ferrenho adversário.
Mas é só a um uso da escrita que
me oponho, aquele que recusa
igualdade à imagem.
Pergunta - Será que se pode discernir um certo desencanto, no início do filme infernal, quanto ao
tom de sua lição de cinema?
Godard - De certa maneira. Mas
eu sou um cidadão normal, que se
desencantou com diversas coisas.
Quando envelhecemos, nos desencantamos paulatinamente,
mas ao mesmo tempo nos encantamos com outras coisas que a
idade nos traz.
Pergunta - Três personagens judeus, é muito para um filme.
Godard - Eu sou o quarto, sou
um judeu do cinema.
Pergunta - De onde vem a importância que o sr. confere cada vez
mais ao destino judaico?
Godard - Eu aprendi aos poucos,
lendo aqui e ali, e terminei por encontrar correspondências. Mas
no fundo jamais consegui saber o
que significa ser judeu. O único
meio de compreender o ser judeu
seria o de me ver como um deles:
quero estar com os outros, mas
quero continuar sem os outros.
Isso me afeta pessoalmente.
Pergunta - Que sentido o sr. confere à comparação que faz no filme,
com base em duas fotos de detentos de campos nazistas, entre o judeu e o muçulmano? De onde vêm
as fotos que servem para essa comparação?
Godard - A primeira é conhecida, é a foto de um detento de
olhos arregalados, que acredito
ter sido tirada quando os campos
foram liberados. A outra mostra
um deportado cujo fim, pode-se
sentir, é iminente. São esses últimos, os que chegaram à morte
por esgotamento físico, que eram
conhecidos nos campos como
"muçulmanos". Eu sempre quis
entender de que maneira os alemães terminaram classificando os
judeus como "muçulmanos". E aí
me ocorreu a idéia de que foi ali
que começou o conflito do Oriente Médio. Temos um apartamento, e alguém chega e diz: "Deus me
escolheu para ocupar esse apartamento, a partir de agora".
Pergunta - Não é perigoso sugerir, como o senhor faz, um paralelo
entre o extermínio dos judeus e o
exílio palestino que se seguiu, no
conflito do Oriente Médio?
Godard - Com certeza refleti
muito, ao colocar as duas coisas
lado a lado. Mas por que ninguém, nem os judeus, nem os palestinos, fez essa comparação? E
eu, ao fazê-lo, não estava pensando: estava agindo como cientista
que aproxima elementos. Normalmente as pessoas preferem falar a ver. Mas eu proponho que
encaremos as imagens. Melhor
ver primeiro e falar depois.
Pergunta - O poeta diz que "ter
Israel como inimigo é o nosso azar,
porque os judeus são o centro do
mundo". Como o sr. entende essa
idéia segundo a qual o povo judeu,
pária das nações por 20 séculos, é o
centro do mundo?
Godard - O que quer dizer "centro do mundo"? Eu entendo o que
ele quer dizer. Há entre os israelitas algo de muito original, mas
nessa originalidade eles introduziram a idéia de origem. A origem
no sentido de serem os primeiros.
Eles teorizam nesse sentido, e é,
portanto, normal que certas coisas tenham acontecido como
aconteceram. E é porque aconteceram que eles podem teorizar.
Pergunta - Passemos do centro
do mundo aos donos do mundo, os
norte-americanos, que são também, em seu filme, os guardiões do
Paraíso.
Godard - Isso não é invenção minha. Todo mundo me aponta como anti-americano, mas é preciso
saber que isso está lá, nos dois últimos versos do hino dos fuzileiros navais, e repetido cem vezes
em Ford e em Hawks. Como eu
poderia tê-lo inventado? Os norte-americanos querem tudo... Há
muita terra no continente americano, mas por que só aquele pedaço se chama América? Os EUA
bem o sabem, é o nome de um
país sem terra, de gente sem terra,
e por isso é preciso que a procurem em outras paragens.
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