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Réquiem para a CINELÂNDIA
Marrocos e Marabá, sobreviventes da época áurea dos cinemas do centro de SP, vão virar multiplex
FÁBIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL
Iniciado nos anos 60, o esfacelamento da Cinelândia paulistana
pode ser consumado justamente
no aniversário de 450 anos da cidade, em 2004.
Dois dos últimos remanescentes da época de ouro dos cinemas
de rua, na década de 50, o Marabá,
na avenida Ipiranga, e o Marrocos, na rua Conselheiro Crispiniano, ambos no centro, vão se transformar em multiplex. O modelo
americano, que concentra várias
salas de cinema num mesmo espaço, geralmente em shopping
centers, predomina hoje nas principais cidades brasileiras.
O Marabá, da Playarte, é o único
grande cinema do centro de São
Paulo que segue funcionando
sem alterar substancialmente
suas características arquitetônicas
originais.
A empresa, que recentemente
inaugurou o multiplex Bristol, na
avenida Paulista, encomendou
um projeto ao arquiteto Ruy Ohtake para fazer cinco salas no Marabá.
Busca agora apoio estatal e parcerias na iniciativa privada. "Acreditamos que, até o começo
do ano que vem, vamos
iniciar as obras. O centro
merece um cinema à altura dos que hoje existem nos shoppings",
disse o vice-presidente
da Playarte, Otelo Bettin
Coltro.
Inaugurado em 1945, o
Marabá ainda tem capacidade para 1.438 pessoas. Mas o balcão,
que pode abrigar 485 espectadores, nem tem sido aberto, por falta
de necessidade.
Na tarde da última quarta, durante uma sessão do filme
"Freddy x Jason", não havia mais
que cem pessoas no cinema.
"Do jeito que o cinema está hoje, com só uma sala, infelizmente
só podemos exibir um filme por
vez", queixou-se Coltro.
Marrocos multiplex
O Marrocos, que fechou as portas em 1997, mas conserva boa
parte de suas características originais, é alvo de negociação entre a
imobiliária Savoy, sua atual proprietária, e o grupo americano Cinemark, um dos líderes mundiais
no setor. Hoje, o espaço, onde se
destaca uma belíssima fonte em
forma de estrela no hall de entrada, é alugado para festas.
O projeto da Cinemark é fazer
um complexo com seis salas de
exibição. "Mas uma delas manteria o glamour e o porte da sala que
lá existia. O átrio é uma das coisas
que seriam mantidas", afirmou o
presidente da empresa do Brasil,
Valmir Fernandes.
Segundo ele, os donos já têm
um "comprometimento" com a
sua empresa para fechar o negócio -um arrendamento do espaço por 20 anos. A Folha tentou
por dois dias falar com a Savoy,
mas as pessoas indicadas para tratar do assunto não responderam
aos recados.
Fernandes informou que a Cinemark procura parceiros para
viabilizar o plano e busca incluí-lo
em leis de incentivo à cultura. "Esperamos poder anunciar o projeto no ano que vem. Seria fantástico dar esse presente a São Paulo
nos 450 anos."
Há um empecilho às ambições
da Playarte e da Cinemark: tanto
o Marabá quanto o Marrocos têm
seus prédios tombados pelo patrimônio histórico, o que significa
que alterações têm de ser autorizadas pelos órgãos responsáveis.
"A reforma seria interna. Não
vamos mudar a fachada, então
não terá problema", diz Coltro.
Fernandes afirma que o projeto
da Cinemark para o Marrocos segue a mesma linha.
Luxo e elegância
Inaugurado em 1952, o Marrocos foi o cinema mais luxuoso da
América do Sul. Era o coroamento da tendência, iniciada alguns
anos antes, de transformar as salas em luxuosos templos do entretenimento. Também naquela
época já se seguia um modelo
americano: para diversificar os investimentos e impulsionar seu
negócio, os grandes estúdios
construíam eles próprios as salas,
que tinham a imponência como
característica comum.
Em 1954, ano do quarto centenário de São Paulo, a grandiosidade do Marrocos, construído em
estilo mourisco, serviu de palco
para o Festival Internacional de
Cinema. Astros de Hollywood como Errol Flyn, Jefrey Hunter e o
diretor Erich von Stroheim estiveram por lá.
Na era da Cinelândia, o espaço
dedicado à platéia era enorme, as
telas idem, os cinemas tinham frisas, salas de espera com lustres,
espelhos finos e mármore.
O Paissandu tinha um elevador
que levava os passageiros ao
"pullman". O ícone da mania de
grandeza foi o Universo, inaugurado em 1939 no Brás, outro pólo
de salas de cinema. Projetado pelo
arquiteto Rino Levi, tinha capacidade para 4.324 pessoas.
O República, na praça homônima, gabou-se de, em
1955, inaugurar a maior
tela de cinema do mundo, com incríveis 250
metros quadrados.
Os investimentos
eram correspondidos.
Na década de 50, era
vendida na cidade de
São Paulo uma média de
50 milhões de ingressos
por ano. Em 1956 foram
vendidos 58,7 milhões,
quando a cidade tinha
cerca de 3 milhões de
habitantes -uma média de quase 20 ingressos por paulistano.
Hoje, a venda anual de bilhetes
em todo o Brasil gira em torno de
80 milhões, menos de 0,5 ingresso
por habitante.
Para frequentar os luxuosos
ambientes, os cinéfilos eram obrigados a se vestir com pompa.
"Não sei se posso chamar isso
de bons tempos. Ter que entrar de
gravata no cinema é ridículo",
afirma o diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,
Leon Cakoff, 55, que foi barrado
no Metro num domingo de sua
infância, porque seu irmão estava
sem gravata.
Cakoff, que é sócio de salas de
cinema na cidade, tentou arrendar o Marrocos para reformar a
sala, mantendo o desenho original, e utilizá-la em eventos relacionados a cinema. Esbarrou no
preço pedido pelos proprietários.
Ele avalia que o cinema da Conselheiro Crispiniano é o único que
poderia reviver a época da Cinelândia. "O resto não tem mais glamour, está tudo arrasado. Quem
acabou com o centro foram as elites. Sucatearam tudo e deixaram
o bagaço para os pobres. Elas que
se virem para consertar."
Broadway
Há tentativas isoladas para, se
não recuperar, ao menos reviver
minimamente o que foi a Cinelândia paulistana, valorizando os
cinemas de rua do centro. Nenhuma parte do Estado.
Uma delas é do engenheiro
Cláudio de Sena, do Instituto
Mais São Paulo. Batizado de
"Broadway Paulistana", o projeto
consiste em criar um pólo de lazer
e gastronomia em torno do largo
do Paissandu, aproveitando a estrutura das várias salas de cinema
que restam na região.
A idéia foi apresentada à administração anterior da Secretaria
Estadual de Cultura e engavetada
pela atual. O "Broadway Paulistana" é bem acolhido pela Associação Viva o Centro.
Em outubro, foi aprovado em
primeira votação na Câmara um
projeto de lei do vereador Nabil
Bonduki (PT) que isenta cinemas
de rua e de galerias do pagamento
de IPTU e de parte do ISS.
O pesquisador Inimá Simões,
autor do livro "Salas de Cinema
em São Paulo", de 1990, obra de
referência no assunto, é cru ao
analisar as iniciativas. "A Cinelândia não existe mais. Tentar recuperar é bobagem. Já passou. É como uma velha máquina Remington. Vai ficar guardada na memória, não dá para recuperar."
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