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ANÁLISE
Transcriador, teórico, concreto, nenhum desses rótulos resume o poeta
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM BUDAPESTE
Poeta concreto. Transcriador
de poesia. Teórico do neobarroco. Cada qual desses rótulos se
aplica a Haroldo de Campos, mas
nenhum deles começa sequer a
resumi-lo.
Haroldo fundou, em meados
dos anos 50, com seu irmão Augusto e com Décio Pignatari, entre outros, o movimento de poesia concreta. Dedicou-se à tradução de poetas estrangeiros de um
modo que era novo e não só no
Brasil, pois, em vez de tentar reproduzir servilmente tal ou qual
poema mais ou menos interessante em nossa língua, começou
selecionando autores (Mallarmé,
Joyce, Maiakóvski etc.) que, fazendo falta, pudessem ter nela impacto decisivo e, para tanto, aplicou à sua transposição um leque
previamente inimaginável de técnicas, idéias, "insights". Para enfatizar as inovações dessa tarefa,
rebatizou a atividade mesma,
chamando-a de "transcriação".
Se havia algo que lhe causava
verdadeiro horror, era o complexo afetado de inferioridade que
permitia à intelectualidade brasileira ostentar uma pseudomodéstia crítica em relação tanto à própria produção quanto à de seus
ancestrais. Daí ele, além de se informar e informar seus leitores
sobre todas as grandes discussões
teóricas que ocorriam no mundo,
lançar também a idéia de que nossa cultura originara-se, não incipiente e subdesenvolvida, mas
adulta e madura, como parte integrante do barroco ibérico.
Cada uma dessas tarefas à qual
se dedicou rendeu dividendos importantes para todos nós e, se havia uma pulsão que subjazia a todas, era sua paixão informada, ou
seja, enraizada menos num "por
que me ufano" emocional do que
numa avaliação rigorosa, racional
do legado e das possibilidades
brasileiras. A prova de tal rigor está no que, se não é sua maior contribuição, constitui sua marca registrada, a saber, uma dedicação
"stakhanovista", "workaholic",
ao que fazia. Pois se, como no caso de qualquer criador, praticamente tudo o que criou está sujeito à discussão, nem seu mais ferrenho opositor poria em dúvida
sua capacidade praticamente sobre-humana de produzir.
Por isso, se bem que nenhum
dos rótulos acima o desmereça ou
limite, pelo contrário, a perspectiva da visão despreconcebida do
conjunto de sua obra revelará, antes de mais nada, três substantivos que prescindem de adjetivos:
poeta, tradutor e pensador.
Sua obra, trabalho, paixão foram, de certa forma, alvo de divergências, ataques e incompreensões que, embora mereçam
ser um dia esmiuçados por sociólogos e historiadores, eclipsam-se
hoje diante de sua curiosidade insaciável, da riqueza incalculável
de suas contribuições, riqueza cuja finalidade filantrópica era sobretudo a de enriquecer seus leitores e uma cultura: a nossa.
Devido à miopia intencional do
ambiente intelectual brasileiro,
decorrente de circunstâncias que,
com um mínimo de perspectiva,
parecem mais cômica do que trágicas, o público, quando lhe facultaram simplesmente ver a obra do
poeta, foi, por assim dizer, condicionado a considerar suas diversas partes isoladamente, à luz de
conceitos pouco discutidos e mal
digeridos que impediram a avaliação honesta de seu conjunto.
Conforme essas brumas artificiais se desfazem, a pergunta que
há de emergir será: como a grandeza óbvia de Haroldo de Campos não foi reconhecida antes?
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