UOL


São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Transcriador, teórico, concreto, nenhum desses rótulos resume o poeta

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM BUDAPESTE

Poeta concreto. Transcriador de poesia. Teórico do neobarroco. Cada qual desses rótulos se aplica a Haroldo de Campos, mas nenhum deles começa sequer a resumi-lo.
Haroldo fundou, em meados dos anos 50, com seu irmão Augusto e com Décio Pignatari, entre outros, o movimento de poesia concreta. Dedicou-se à tradução de poetas estrangeiros de um modo que era novo e não só no Brasil, pois, em vez de tentar reproduzir servilmente tal ou qual poema mais ou menos interessante em nossa língua, começou selecionando autores (Mallarmé, Joyce, Maiakóvski etc.) que, fazendo falta, pudessem ter nela impacto decisivo e, para tanto, aplicou à sua transposição um leque previamente inimaginável de técnicas, idéias, "insights". Para enfatizar as inovações dessa tarefa, rebatizou a atividade mesma, chamando-a de "transcriação".
Se havia algo que lhe causava verdadeiro horror, era o complexo afetado de inferioridade que permitia à intelectualidade brasileira ostentar uma pseudomodéstia crítica em relação tanto à própria produção quanto à de seus ancestrais. Daí ele, além de se informar e informar seus leitores sobre todas as grandes discussões teóricas que ocorriam no mundo, lançar também a idéia de que nossa cultura originara-se, não incipiente e subdesenvolvida, mas adulta e madura, como parte integrante do barroco ibérico.
Cada uma dessas tarefas à qual se dedicou rendeu dividendos importantes para todos nós e, se havia uma pulsão que subjazia a todas, era sua paixão informada, ou seja, enraizada menos num "por que me ufano" emocional do que numa avaliação rigorosa, racional do legado e das possibilidades brasileiras. A prova de tal rigor está no que, se não é sua maior contribuição, constitui sua marca registrada, a saber, uma dedicação "stakhanovista", "workaholic", ao que fazia. Pois se, como no caso de qualquer criador, praticamente tudo o que criou está sujeito à discussão, nem seu mais ferrenho opositor poria em dúvida sua capacidade praticamente sobre-humana de produzir.
Por isso, se bem que nenhum dos rótulos acima o desmereça ou limite, pelo contrário, a perspectiva da visão despreconcebida do conjunto de sua obra revelará, antes de mais nada, três substantivos que prescindem de adjetivos: poeta, tradutor e pensador.
Sua obra, trabalho, paixão foram, de certa forma, alvo de divergências, ataques e incompreensões que, embora mereçam ser um dia esmiuçados por sociólogos e historiadores, eclipsam-se hoje diante de sua curiosidade insaciável, da riqueza incalculável de suas contribuições, riqueza cuja finalidade filantrópica era sobretudo a de enriquecer seus leitores e uma cultura: a nossa.
Devido à miopia intencional do ambiente intelectual brasileiro, decorrente de circunstâncias que, com um mínimo de perspectiva, parecem mais cômica do que trágicas, o público, quando lhe facultaram simplesmente ver a obra do poeta, foi, por assim dizer, condicionado a considerar suas diversas partes isoladamente, à luz de conceitos pouco discutidos e mal digeridos que impediram a avaliação honesta de seu conjunto.
Conforme essas brumas artificiais se desfazem, a pergunta que há de emergir será: como a grandeza óbvia de Haroldo de Campos não foi reconhecida antes?



Texto Anterior: Saiba mais: Abolição do verso foi uma das marcas do concretismo
Próximo Texto: Frases
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.