São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

Texto Anterior | Índice

ILUSTRADA

Em apresentação no Carnegie Hall, cantor e compositor baiano mescla samba novo a comentários sobre o poder

Nos EUA, Caetano iguala Bin Laden e Rice

RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK

O tropicalismo, essa forma de pensar adotada por Caetano Veloso, igualou anteontem, em Nova York, Bin Laden e a assessora de Segurança Nacional dos EUA. "Diferentemente de Osama e Condoleezza [Rice], eu não acredito em Deus", cantou ele, em português, no show do CD "A Foreign Sound", para um Carnegie Hall lotado.
O verso é de um samba que o compositor baiano disse ter criado quando preparava o disco de canções americanas. "Enquanto eu gravava essas músicas que não escrevi, queria compor coisas novas, minhas", explicou em inglês.
A letra fala da impossibilidade de uma identidade individual completa, fechada, definitiva, tema caro ao tropicalista Caetano, mas estrangeiro a muitos ouvidos norte-americanos -para os quais, como ele já disse, branco é branco, preto é preto, e a mulata não é a tal-, bem representados na Casa Branca de George W. Bush pós-11 de Setembro.
O músico, que de maneira didática comentava ou traduzia versos para o inglês de quase toda canção em português, não explicou para o público do que tratava aquele samba, que também dizia: "Você, que, me olhando, detona a explosão de saber quem eu sou".
Não foi um momento isolado, mas parte da lógica de um show que, diferentemente do disco, exclusivamente em inglês, intercalou sambas como "Não Tem Tradução", de Noel Rosa, "Adeus Batucada", de Sinval Silva, e "Brasil Pandeiro", de Assis Valente.
Uma questão de poder está colocada, explicou Caetano, na relação entre as línguas e, portanto, entre as culturas -problema que o tropicalismo pretendeu resolver ultrapassando a dicotomia entre dominar ou ser dominado.
"Com "Fina Estampa" [disco de músicas latinas], estava enfrentando essa questão de poder da língua", afirmou. "E, quando você pensa na língua inglesa, você realmente pensa em poder." Os instrumentos para resolver esse problema político -que se agrava pelo fato de o português ser, como disse, "uma língua de gueto"- foram a "sofisticação" da bossa nova e a mistura de "sagacidade" e "ironia" do tropicalismo.
A escolha das músicas trouxe para o show o mesmo "filtro" das canções do disco, servindo como comentário sobre o poder, seja ao dizer que é preciso aprender inglês, em "Baby", ou nos versos de Noel Rosa: "Alô, boy, alô, Johnny só pode ser conversa de telefone". Satisfeito com a própria lógica, Caetano comentou: "Talvez seja mais difícil [nesse disco] ler as muitas camadas de comentários e observações nas músicas".
É de perguntar se o espetáculo de anteontem, em que Caetano declarou sua identificação com a América -todo o continente, incluindo os EUA-, não pode orientar essa leitura. Como na inserção, ao final de "It's Alright, Ma (I'm Only Bleeding)", de Bob Dylan, dos versos -da canção de "Deus e o Diabo na Terra do Sol"- "Se entrega, Corisco! Eu não me entrego, não".
Mas não, porque já estavam lá, dos versos de "Love for Sale", de Cole Porter: "Quem está preparado para pagar o preço/ de uma viagem ao paraíso?".


Texto Anterior: Artes plásticas: Mostra de vídeos no Paço faz público dormir
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.