|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Tudo normal por aqui
A "normalidade" se desmascara, revelando o poço sem fundo da violência e da barbárie
EM 29 de maio de 1942, pleno
período da ocupação nazista,
os judeus franceses passaram
a ter de usar uma estrela amarela,
"do tamanho da palma de uma mão
com contorno em preto", na qual deveria estar escrita, "em letras pretas,
a palavra JUDEU". Deveria ser "levada de forma bem visível no lado
esquerdo do peito e costurada na
roupa com força".
Em fins de junho, o senhor Raymond Berr, vice-presidente de uma
grande indústria, é preso pelas autoridades numa rua de Paris. O inspetor de polícia liga para a família dele,
explicando que nada teria acontecido se a estrela de Berr estivesse bem
costurada.
Acontece que, em vez de costurá-la, a mulher do industrial tinha afixado a estrela com grampos e botões
de pressão, para que ele pudesse
usá-la em vários ternos. O inspetor
acrescenta: "No campo de Drancy,
as estrelas serão costuradas".
Drancy era o lugar para onde os
judeus franceses eram levados, antes de embarcar para os trens a caminho de Auschwitz.
Quem conta o episódio da prisão é
a filha de Raymond Berr, Hélène,
num diário que está sendo publicado no Brasil pela editora Objetiva.
Os manuscritos ficaram muito
tempo guardados; só em janeiro de
2008 foram lançados na França,
com grande impacto. O dia-a-dia da
ocupação nazista em Paris é registrado do ponto de vista de uma moça
de 20 e poucos anos, bastante rica,
que estuda literatura inglesa na Sorbonne e, com um grupo de amigos,
reúne-se para tocar peças dos compositores Beethoven, Schubert e
Bach ao violino.
O que mais aperta o coração,
quando se lê "O Diário de Hélène
Berr", é o fato de que sua autora só
aos poucos vai tomando consciência
das atrocidades que terminarão por
vitimá-la.
Mesmo depois da notícia da prisão do pai, Hélène mantém suas atividades cotidianas. No dia 4 de julho, ela anota:
"Dannecker [comandante da SS]
ordenou a evacuação do hospital
Rothschild. Todos os doentes e os
recém-operados foram enviados para Drancy. Em qual estado? Com
quais cuidados? É atroz.".
Logo em seguida, Hélène escreve:
"Vieram Job e Breynaert. Job não
quer saber de nada. Tocamos o
Quinteto "A Truta". Muito bonito.".
Nesse ano de 1942, Hélène ainda
está muito envolvida com seus problemas sentimentais; começa a
apaixonar-se por um rapaz que, dali
a alguns meses, decide abandonar
Paris e ingressar na Resistência. Há
leituras, piqueniques. O pai, cidadão
influente, é libertado: não o levarão
para Drancy; não, por enquanto.
A família teria ainda condições de
fugir de Paris. Hélène acha que isso
seria uma covardia, ou pelo menos
uma falta de solidariedade com as
demais vítimas da ocupação. Mas
acrescenta: "Penso que há certo
egoísmo em mim, pois todas as alegrias que experimentei estão concentradas nesta vida daqui".
Eis o que há de especialmente assustador no diário de Hélène Berr. A
vida "normal", seus prazeres e rotinas, mantém-se em condições de
absoluta excepcionalidade e horror.
Cada dia traz novidades hediondas, mas são poucos os que percebem a que cúmulo as coisas chegarão em breve; é como se a capacidade de toda pessoa para adaptar-se,
evitando pensar no pior, e tocando a
vida como dá, se revelasse decisiva
para a ruína final.
Desconfiar da "normalidade", eis
uma coisa que não estamos nunca
preparados para fazer. E, quando a
"normalidade" se desmascara de
uma vez por todas, revelando o poço
sem fundo da violência e da barbárie, já é tarde demais.
As deportações para os campos de
extermínio começam a ser feitas.
Aos poucos, Hélène se dá conta de
um destino praticamente inevitável.
Cuida de crianças pequenas, cujos
pais já foram levados para Auschwitz. Logo as crianças serão deportadas também.
Ao mesmo tempo, Hélène continua lendo os poetas ingleses. Cita
uma passagem de John Keats (1795-1821): "Esta mão viva, agora quente e
capaz/ De apertar vigorosamente,
iria, se se resfriasse/ no silêncio gélido do túmulo/ Tanto rondar os teus
dias e gelar os teus sonhos noturnos/ que desejarias que teu coração
secasse de todo o seu sangue/ Para
que novamente corresse em minhas
veias a vida rubra,/ E tranqüilizasse
a tua consciência, vê: aqui está ela,/
Eu a estendo em tua direção".
Mais de 60 anos depois da morte
de sua autora, o diário de Hélène
Berr reaparece, vivo, em nossos
tempos "normais"; é hora de segurá-lo em nossas mãos.
coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Crítica/música/Joss Stone: Simpatia da cantora inglesa é pouco em show modorrento Índice
|