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ARTIGO
Obra do músico fundiu orixás e modernismo
ANTONIO RISÉRIO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Caymmi, embora único,
é um produto típico da
mestiçagem e do sincretismo baianos. Um mulato
baiano de ascendência italiana
(como o também sambista Carlos Marighella, seu contemporâneo), criado entre a capoeira,
os afoxés, o samba-de-roda tradicional do Recôncavo Baiano,
cânticos de orixás e formas musicais populares e eruditas da
Europa, de Bach a Debussy, para não falar da literatura de Jorge Amado e da poesia de Lorca.
Costumo defini-lo como a
expressão estética concentrada
da cultura de uma cidade tradicional, a Salvador centenária e
senhorial das primeiras décadas do século passado, principal núcleo urbano do recôncavo agrário e mercantil da Bahia.
Dorival Caymmi, no veio mais
baiano de sua obra, fala desse
mundo "arcaico", anterior à expansão nordestina do capitalismo brasileiro. Quando não se
planta em um lugar de certo sabor tribal, a comunidade de Itapuã, com seus ritmos recorrentes de vida.
E ele pôde ser expressão estética dessa cultura porque tinha uma intimidade essencial
com suas linguagens. Com a fala do povo, o "sermo vulgaris"
baiano. Com a poesia da capoeira e do samba. Com a religiosidade sincrética local. E
sempre procurou recriá-las em
sua lírica. Desse ponto de vista,
aliás, sua proverbial "preguiça"
será melhor vista como um método de trabalho.
Caymmi demorava anos para
fazer uma canção porque queria a palavra certa no lugar certo, como se ela tivesse estado
sempre ali. Como se tivesse
nascido naquele momento de
uma canção. Essa busca da
fluência da palavra cantada faz
com que muitas de suas frases
pareçam colhidas no ar. Mas
elas resultam, na verdade, de
paciente artesanato verbal, feito por um criador que conhece
as minúcias do seu ofício.
Interessante também notar
que a poesia caymmiana é avessa à metáfora, mas buscando
sempre o plástico, a recriação
lingüística da imagem visual.
Além de mostrar um certo gosto pelo substantivo e, aqui e ali,
se desmanchar em sufixos diminutivos de ternura.
Um aspecto fundamental
(que é também um ensinamento) da criação caymmiana é que
ela está, ao mesmo tempo,
enraizada em solo ancestral e
aberta ao horizonte contemporâneo. Fala de orixás, da arquitetura colonial, e vem do samba
mais antigo do recôncavo. Ao
mesmo tempo, dialoga com a
poesia modernista e se deixa
banhar pelo impressionismo
musical francês.
Estética mestiça
Não nos esqueçamos de que
Itapuã era uma comunidade de
pescadores místicos e artesanais, mas Caymmi a fez soar pela indústria do disco e pelas ondas eletromagnéticas da Rádio
Nacional, além de incursionar
bem à vontade por um gênero
novo, o samba-canção carioca.
Com o poder de sedução de
sua estética mestiça, Caymmi,
como João Gilberto, contribuiu
para provocar alterações na estrutura da sensibilidade brasileira. E para promover uma
mudança profunda e altamente
significativa na hierarquia de
nossas formas culturais.
Para dar um exemplo, quando ele lançou "Promessa de
Pescador", o canto da Iemanjá
tinha algo de estranho e misterioso, de um modo geral, para
ouvidos sudestinos. Mas quem
diria isso hoje, quando Iemanjá
é celebrada de uma ponta a outra do país? Naquela época, o
candomblé ainda sofria perseguições policiais. Ainda podia
ser tratado em termos de "resistência cultural". Hoje, templos candomblezeiros são tombados oficialmente como patrimônio do povo brasileiro.
Quando Caymmi soou no
Brasil meridional, trazia a
mensagem cálida e ecológica de
um lugar idealizado, que parecia parado no tempo e viver em
paz, imune a conflitos sociais.
Caymmi reforçou assim, nacionalmente, o mito baiano. Era
como se falasse de um espaço
utópico: o lugar de nossa origem, premiado por belezas arquitetônicas e ambientais, onde vivia uma gente feliz, ensolarada e muito singular.
Naquela época, o mito não
deixava de encontrar alguma
correspondência na Bahia real.
Hoje, não. A Bahia de Caymmi
ficou definitivamente para trás.
É uma Bahia que soa atualmente, também para os próprios
baianos, como uma espécie de
utopia. A utopia de um poeta
erótico, culinário e ecológico.
Poeta de cama, mesa e mar.
ANTONIO RISÉRIO é poeta e antropólogo, autor
de "Caymmi: Uma Utopia de Lugar" e "Uma História da Cidade da Bahia"
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