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ARTIGO
Obra nos ajuda a entender o projeto de país que perdemos
O que é que Caymmi tem? Dez características que fazem do compositor mestre atemporal de canções que se misturaram para sempre à identidade brasileira
FRANCISCO BOSCO
ESPECIAL PARA A FOLHA
1 MESTRE MAIOR
Dorival Caymmi foi um mestre
maior da arte da canção, a arte
de pôr em relação letra e música, de casar uma coisa e outra,
como se costuma dizer. Não há
nenhum momento de sua concisa e primorosa obra em que
essa relação esteja malfeita, em
que se descubra uma imperícia
ou negligência do cancionista.
Ao contrário, a perfeição está
em toda parte. Como disse Luiz
Tatit, "cada fragmento de composição já é uma boa amostra
da obra completa".
2 RIGOR BAIANO
A proverbial preguiça baiana é
aqui desmentida por um rigor
insuspeitado. Caymmi às vezes
levava anos para terminar uma
canção. E não chegou a compor
muito mais do que uma centena delas, em sua vida. É que sua
ética produtiva se centrava no
princípio de só fazer as canções
necessárias. Nesse caso, o rigor
abarca uma dimensão passiva:
a paciência. Caetano Veloso
elucidou o modus operandi
dessa ética: "É o deixar aparecer, deixar acontecer e ser extremamente responsável com
relação ao que acontece".
3 ATEMPORALIDADE
Levada ao extremo, essa rigorosa mestria cria um efeito de
atemporalidade, pois é como se
as palavras jamais tivessem
existido sem seus respectivos
sons. Daí que, atemporais, elas
parecem muitas vezes anônimas, folclóricas, pois o que não
tem história também não pode
ter autor. "Não parece coisa feita por gente", resumiu Arnaldo
Antunes.
4 O MITO
Esse efeito de atemporalidade e
anonimato é decisivamente reforçado pelo fato de as canções,
em sua quase totalidade, inscreverem-se plenamente no
mito brasileiro, que elas assim
eternizam. O mito não é uma
mentira, mas uma auto-imagem que revela um desejo e um
projeto: a alegria, a cordialidade, a liberdade, o erotismo, a religiosidade sincrética afro-brasileira, a mestiçagem.
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O PAI
Pois tudo isso brilha com uma
rara integridade nos "sambas
sacudidos" e "canções praieiras" de Caymmi, em que portanto reconhecemos nosso mito identificador. Por isso
Caymmi "é o pai", como afirmou Lorenzo Mammi.
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MODERNO
Mas isso não é tão simples. Pois
Caymmi é ao mesmo tempo um
cancionista moderno e até modernizador. Tom Jobim lembra
que ele "passou a empregar notas de sexta e sétima maiores
nos acordes menores, imprevisíveis modulações de meio-tom, coisas que ninguém usava
na época".
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PARADOXOS
Daí Antonio Risério, em seu livro "Caymmi: Uma Utopia de
Lugar", que é a referência
maior ao estudo crítico da obra
do mestre baiano, ter apontado
uma "dialética entre o novo e o
velho, o arcaico e o contemporâneo, a tradição e a invenção".
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CANÇÕES PRAIEIRAS
Tal paradoxo vem à tona com
nitidez na série das "canções
praieiras", que Jorge Amado
elegeu com justeza como "a
parte mais poderosa e permanente de suas composições".
Essas canções que narram a vida de pescadores numa Itapuã
mítica são tão originais que
inauguram um gênero, pois não
havia algo como "canções
praieiras" na tradição da canção popular brasileira. Não havia e não haveria depois; é um
gênero de um autor só, que nasce e morre com Caymmi.
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SEM EXPLICAÇÃO
Com isso somos lançados ao
problema da originalidade
inexplicável de Caymmi. Diferentemente de talvez todos os
nossos grandes cancionistas
populares, Caymmi não se situa facilmente numa tradição
que ele a um tempo absorve e
reinventa. No gesto de João
Gilberto, por exemplo, é mais
fácil de compreender tanto o
corte quanto a continuidade,
igualmente radicais. Em Caymmi, uma coisa e outra são mais
difíceis de localizar. Uma frase
de Chico Buarque resume essa
perplexidade: "Não vejo de onde aquilo vem".
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PERMANÊNCIA
Seja como for, "aquilo" veio, ficou e ficará. Nas canções de
Caymmi, que moram no fundo
da memória coletiva do Brasil e
ajudaram a construir nossa
identidade (com a qual estarão
para sempre misturadas), podemos mirar uma realização e
uma possibilidade, uma história e um projeto. Em tempos de
ódio e violência, as canções de
Caymmi talvez nos ajudem a
entender alguma coisa de essencial que perdemos em algum momento de nossa modernização.
FRANCISCO BOSCO, ensaísta e letrista, é autor
de "Folha Explica Dorival Caymmi"
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