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comentário
Comediante unia talento e coragem
AGILDO RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se Monteiro Lobato
fosse vivo, com certeza já estaria adaptado
à irreverência ao extremo,
pornográfica até, no bom
sentido, cáustica e individualista de nossos tempos. E a
boneca Emília do século 21
teria, com certeza, o perfil de
Dercy Gonçalves.
Ou talvez Dercy fosse uma
Emília nos padrões atuais de
humor, sarcasmo, inteligência e, principalmente, talento criativo. Felizmente, pertenço às duas gerações: à de
"Sítio do Pica-Pau Amarelo"
e à de "O Bordel de Dercy".
Bordel que amamos, no qual
nos divertimos, com que
aprendemos e, sem dúvida,
que respeitamos.
Pois Dercy era um gênio
autêntico. Importa muito o
que ela falava, fosse em qualquer setor de nossa vida pública, e mais ainda o que ela
fazia, nos últimos anos, com
uma performance e um vigor
de dar inveja.
Em depoimento à Folha
na década de 90, afirmou:
"Não tenho doença, não tenho dores, não tenho saudade de nada nem de ninguém.
Não tenho ódio, não tenho
amor, nunca fui apaixonada.
Sou livre. Não tem outra
igual a mim! Ninguém tem
mais moral do que eu".
Aí ela é igual à Emília de
Monteiro Lobato, que afirmava: "Não tenho ódio nem
amor, sou livre e não tenho
medo de nada, porque sou
boneca de pano com macela
por dentro. Qualquer "desastre", a Tia Anastácia me faz
outra".
A diferença é que não se
faz outra Dercy. Nunca mais,
da boca de ninguém, se ouvirá: "Não saio sem dentadura,
pestana e peruca".
Afirmação de uma coragem única numa artista como ela, que pode dispensar
esses detalhes, porque sai
com aquilo que é o maior
presente que Deus lhe deu:
seu imenso e inconfundível
talento.
Ela, como todo humorista,
era o desabafo do povo, a alegria de todos aqueles que a
ouviam, embevecidos, porque ao povo não é dado o direito de dizer francamente
aquilo que pensa... e ela podia. Podia e devia. Estava, como sempre esteve, acima do
bem e do mal.
Atuando nas mesmas
áreas -teatro, filmes e TV-,
nunca tive a oportunidade
de contracenar com ela. Mas
vi quase tudo o que fez e
aprendi. Imito-a em quase
todos os meus shows e programas de TV.
Nesses momentos, "incorporo" a figura dela e isso me
dá uma imensa satisfação. É
uma homenagem que tento
fazer.
Não conheço a cidade de
Santa Madalena, no Rio, onde em 23 de junho de 1907
nasceu Dercy. Um dia vou
reverenciar a terra que produziu esse gênio. Quero "viajar" no berço da estrela que
dividiu com Oscarito a revista, "Quero Ver isso de Perto",
a que assisti umas 20 vezes
no teatro Carlos Gomes. Pois
ali estavam os dois que muito trabalho deram para a
censura da época.
Ri, como sempre riu com
ela todo o país. Como sempre riu e riem várias gerações beneficiadas pela arte
incomparável dessa deusa
do humor.
AGILDO RIBEIRO é ator e humorista
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