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LIVROS
Crítica
Em "Veneno Remédio", Wisnik "parafusa" o marxismo uspiano
Livro vê no futebol um campo privilegiado de expressão do país como uma "droga"
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
Deixemos o pontapé inicial
com José Miguel Wisnik: "O futebol não é apenas a ocasião para estudar a sociedade à sua
volta, mas um dos elementos
nucleares nos quais pode se ler,
num nível não verbal, o fato irrebatível de que o Brasil é uma
droga, em toda a potência ambivalente da expressão: a substância não substancial que se
caracteriza por ser ao mesmo
tempo mortífera e salvadora,
redentora e destrutiva, dividindo-se e repondo-se, sem se decidir entre essas faces opostas"
(páginas 244 e 245).
O trecho nos instala no miolo
do argumento de "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil".
Não é um livro fácil, embora seja delicioso. O próprio autor
nos adverte desde o início: entre a falta de apetite teórico do
público boleiro e o desdém da
inteligentsia pela sabedoria dos
pés, "Veneno Remédio" não
tem leitor evidente. Ao final de
mais de 400 páginas, entende-se por que Tostão, o craque esclarecido, desponta naturalmente como uma espécie de interlocutor ideal de Wisnik.
Num ambiente acadêmico
retraído e aviltado como tem sido o brasileiro; numa época em
que o debate nacional parece
capturado pela lógica sectária
de um Fla x Flu mal jogado entre os que são pró ou contra Lula; quando, além disso, os horizontes das próprias ciências
humanas se vêem diminuídos
-nesse terreno minado o livro
de Wisnik surge como um grande acontecimento intelectual.
As quatro partes de "Veneno
Remédio" se dividem de maneira sugestiva: a primeira
("Preliminares") nos aquece
para o jogo. Nela, o capítulo "A
Ilha de São Vicente", obra-prima do relato autobiográfico,
realiza uma espécie de educação sentimental que dá lastro
às ambições do livro: "entre o
bairro e o mundo", o adolescente que participa das peladas à
beira-mar em campos de areia
sem linhas definidas é o mesmo
que testemunha in loco o surgimento de Pelé como se aquilo
tudo fosse muito natural.
As partes 2 ("A Quadratura
do Circo: a Invenção do Futebol") e 3 ("A Elipse: O Futebol
Brasileiro") do livro seriam o 1º
e o 2º tempo, reunindo o essencial do jogo. Acaso ou não, os
capítulo somados são 45.
Além do tempo regulamentar, "Veneno Remédio" se estende, na sua última parte
("Bola ao Alto: Interpretações
do Brasil"), por mais dois capítulos de acréscimos, nos quais
se instala algo como uma "mesa-redonda Brasil em Debate".
Como nas noites de domingo, talvez esse epílogo especulativo acabe ofuscando o próprio jogo -ou o que veio antes.
Seria uma injustiça com Wisnik e uma pena para o leitor.
Mas há ainda outro risco, este extensivo ao livro inteiro: vê-lo como um duelo frontal entre
Gilberto Freyre e a USP, como
se entrassem em campo o Marxismo Uspiano Esporte Clube
contra o Mestre de Apipucos
Futebol Clube para disputar o
que, afinal, nos define: o veneno amargo da escravidão ou o
doce remédio da mestiçagem.
Wisnik eleva esse jogo a outro patamar. Se mostra inegável simpatia pela obra de Gilberto Freyre, é como um típico
filho da USP que investe contra
a visão envenenada do país gestada na sua própria casa.
De maneira muito breve, o
autor nos propõe um resgate do
sentido original do ensaio clássico de Antonio Candido sobre
a "dialética da malandragem",
enfatizando nele a descoberta
de um "encantador mundo sem
culpa, de ânimo democrático e
tolerante" (pág. 424), mundo
que existe no interior brutal de
uma sociedade escravocrata.
Se essa ambivalência se perdeu ou foi ocultada do texto de
Candido, diz Wisnik, a culpa foi
de seus herdeiros: o crítico Roberto Schwarz e sobretudo o filósofo Paulo Arantes, em quem
o autor reprova o "júbilo hipercrítico" escancarado no diagnóstico fatalista de que o "futuro do mundo é o Brasil e o Brasil é o fim do mundo".
Como o "João" que é parafusado por um drible na canção
"O Futebol" (1989), de Chico
Buarque, Wisnik "parafusa" o
marxismo uspiano, torcendo-o
sobre si mesmo. E termina propondo, contra essa negatividade hiperbólica, uma espécie de
antiemplastro Brás Cubas:
abandonemos de vez essa idéia
fixa de que "o país é ou receita
de felicidade ou fracasso sem
saída -ou total ou nulo, ou panacéia ou engodo, ou paradisíaco ou infernal" (pág. 408).
Mesmo sob o risco de simplificação, talvez se possa ver nesse apelo final e resignado ao
bom senso algo como uma imagem refratada do realismo da
era Lula.
Nada disso, porém, ofusca o
brilho deste que parece ser não
apenas mais um, mas "o" livro
sobre o tema já escrito no país.
Alguns tenderão a ver em
"Veneno Remédio" um excesso
de pedaladas verbais, dribles
retóricos demais para quem,
afinal, fala só de um jogo de bola. Ora, todo garoto sabe, como
Nelson Rodrigues, que "a mais
sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana".
VENENO REMÉDIO - O FUTEBOL
E O BRASIL
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (446 págs.)
Avaliação: ótimo
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