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Crítica/"Macacos Malvados"
Livro desonra influência da ficção científica de Philip K. Dick
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dentre todos os gêneros
da literatura, talvez a
ficção científica seja o
que mais exija do leitor a tal
"suspensão voluntária da descrença" sugerida por Coleridge.
Sem muita credulidade compulsória não se embarca em
qualquer viagem narrativa,
muito menos em naves espaciais através do cosmos.
É fácil verificar que "Macacos Malvados", romance do
norte-americano Matt Ruff,
tem como qualidade mais evidente exigir esse esforço numa
medida além do razoável. Ao lê-lo, não foi possível precisar em
que altura do livro minha descrença deixou de levitar, desfazendo-se em mil pedaços ao
cair no chão. Posso adiantar,
porém, que isso aconteceu logo
nas páginas iniciais.
Tudo começa num quarto
branco onde uma mulher chamada Jane Charlotte está algemada à espera do psiquiatra
que a interrogará. A trama é desenvolvida nesse esquema de
pergunta e resposta entre o
médico e sua suposta paciente.
Jane é acusada de assassinato e,
para se justificar, relata os episódios de sua vida desde a infância em San Francisco junto
à mãe e ao irmão.
Após cometer delinqüências
na juventude, ela afirma ter sido recrutada pela organização
de combate ao mal cujo nome
dá título ao livro. É assim que
Jane Charlotte adere a uma
cruzada maniqueísta de eliminação de assassinos seriais e
abusadores sexuais.
Até aí não há nada demais.
Parece mais uma trama de ação
dessas que pululam nas telas de
cinema. A dificuldade para
manter a peteca da descrença
no ar aumenta quando Jane recebe sua arma, um revólver CN
(de "causas naturais") que dispara infartos, tromboses etc.
Para não citar as atividades de
outras divisões da organização,
a Panóptico (que vigia a tudo e a
todos), a Custo-Benefício e os
Palhaços Assustadores, assassinos seriais regenerados.
Ok, haveria passagens divertidas (se você é daqueles que
prefere ler o roteiro a assistir o
filme), mas Matt Ruff não consegue imprimir visualidade às
cenas, acelerando tudo em demasia e deixando à deriva alguns personagens que poderiam ser interessantes.
"Macacos Malvados" é devedor de Philip K. Dick (1928-1982), autor visionário que afirmou o seguinte num discurso
de 1977: "Estou certo de que
não me crêem, e de que tampouco crêem que acredito no
que afirmo. São livres de acreditar ou não, porém creiam ao
menos nisto: eu não estou brincando. Muitas pessoas asseguram recordar suas vidas anteriores. Eu, de minha parte, afirmo que posso recordar uma vida presente distinta".
Antecipador da esquizofrenia massiva do século 21, Dick
não merece os seguidores que
tem.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra)
MACACOS MALVADOS
Autor: Matt Ruff
Tradução: Angela Pessoa
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 43 (264 págs.)
Avaliação: ruim
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