São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TRECHO

Positivamente, meu irmão foi acima de tudo um torturado. Sua tortura seria interessante se eu a explorasse com critério -mas jamais me preocupei com problemas do espírito. Belo para mim é um bife com batatas fritas ou um par de coxas macias.
Não sou lido tampouco. A única atração que tive por livro limitou-se à ilustração de um tratado de educação sexual que o vigário do Lins fez o pai comprar para nosso espiritual proveito. Uma mulher nua, devorada por cobras e chamas, nas profundezas do inferno. Segundo o texto, era essa a imagem da luxúria e demais safadezas que atentam de uma forma ou outra contra os mandamentos da Santa Lei de Deus.
O livro fez sucesso em nossas mãos. Cometeu-se muita masturbação por causa dele -algumas páginas ficaram emporcalhadas. Se não cheguei a tanto não foi culpa da mulher, bem merecia o pecado, culpa das cobras, sempre me inspiraram repugnância. Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito.
Não creio nos sentimentos encabulados, nos lírios disfarçados que se benzem quando os raios caem. Meu materialismo é integral. Nasceu no mesmo ventre que me concebeu. Mas voltemos ao irmão.
Dentro da predestinação que fez Caim matar o inocente Abel e Jacó passar o conto-do-vigário em Esaú, o torturado irmão foi coisa que sempre desprezei.
Nunca fiz indagações em torno de nossas diferenças.


Extraído de "O Ventre", de Carlos Heitor Cony


Texto Anterior: Crítica/"O Ventre": Cony confronta anos JK com romance sarcástico e profundo
Próximo Texto: Crítica/"Macacos Malvados": Livro desonra influência da ficção científica de Philip K. Dick
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.