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Crítica/"O Ventre"
Cony confronta anos JK com romance sarcástico e profundo
Livro de estréia do escritor e colunista da Folha Carlos Heitor Cony, "O Ventre" ganha nova edição em seu cinqüentenário
BERNARDO AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Carlos Heitor Cony disse
ao que veio logo no primeiro livro. "O Ventre",
que ganha nova edição em seu
cinqüentenário, é um romance
a palo seco, duro, cruento, profundo. Publicado na contramão
da euforia desenvolvimentista
(anos JK, bossa nova, Copa da
Suécia), constitui o que o crítico Alfredo Bosi chamou, ao comentá-lo, de uma "representação do universo degradado da
"persona" burguesa".
José Severo, narrador em
primeira pessoa, é um filho
problemático -mau aluno,
feio, emburrado- que cedo se
descobre bastardo, fruto do
"comborço do pai e da vergonha da mãe". Brigado com a família, expulso do internato,
deixa o Rio para viver como
motorista de ônibus em Maceió
e, depois, Brasil afora, por um
tempo, como caminhoneiro.
Divide o palco central do romance com um "torturado irmão", matemático renomado, e
Helena, amiga de infância cuja
vocação -fiel ao veio machadiano de Cony- será armar entre os dois um circo, e cerco, de
astúcia, sensualidade e dissimulação.
Neo-realista nas águas do
existencialismo de Jean-Paul
Sartre então em voga, Cony explora, já aí, temas que marcam
vários romances seus: a questão da paternidade, o adultério,
a liberdade individual, a relação
entre irmãos, uma presença feminina densa e desnorteante, a
hipocrisia à luz da fé, o suicídio.
A certa altura, Severo afirma:
"Tragédia é sopa. Pior é a aflição. A dúvida -por mais fortes
que sejam as evidências, sempre se dá um jeito de introduzir
a dúvida- é pior". Coisas ruins,
portanto, a gente tira de letra,
pensa o narrador. O que nunca
se acomoda é o que vai dentro
da cabeça. Diz ainda, sobre o
pai que não era pai: "Tentei
gostar daquele homem que não
era nada meu e que sofria. Era
um porco, como os outros homens, mas sofria e isso o enobrecia. O sofrimento tem dessas coisas. A felicidade é vil".
Ironia e humor sarcástico
Como em toda a obra de
Cony, essa aspereza tem contrapeso na ironia e no humor
sarcástico. Ao narrar uma conversa com o irmão "sábio", na
casa deste, Severo conta: "Levantou-se. Acendeu outro cigarro e ficou passeando de um
lado para o outro. Olhou para
um quadro na parede. Era a reprodução vulgar de um Degas:
bailarinas em aula, no primeiro
plano, ao lado, uma delas amarra a sapatilha cor-de-rosa. O irmão soprou a fumaça em cima
do Degas. Eu, como sempre
mais modesto, soprei minha
humilde baforada em cima do
catálogo de telefones".
"O Ventre" surpreende, como livro de estréia, por marcar
de cara, também, a habilidade
descritiva de Cony. Numa visita
a Helena, paixão desde um "porão escuro" da infância, Severo
a vê "bem diferente agora. Era
uma mulher transbordando
seiva, sumarenta. Saia justa, colante, apertando as coxas fortes. Sentada na minha frente,
de pernas cruzadas, via os joelhos nus, dobrados, o brilho da
pele esticada na rótula. Fêmea
saudável, negócio sério na cama. Ombros suaves, numa curvatura que se prolongava nos
braços que saíam da blusinha
vermelha [...]". E por aí afora...
Naquele ano de 1958, Nelson
Rodrigues espantou o Rio com
a peça "Os Sete Gatinhos", em
que um pai de classe média,
usando as filhas como atração,
faz de sua casa um prostíbulo.
Ao lado do autor de "O Ventre",
o dramaturgo revelava, assim,
que o país, então, ia muito além
dos barquinhos a navegar nas
águas de Ipanema.
BERNARDO AJZENBERG , escritor, tradutor e
jornalista, é autor, entre outros, de "Homens
com Mulheres" e "A Gaiola de Faraday" (Rocco)
O VENTRE
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 29,90 (192 págs.)
Avaliação: ótimo
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