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no teatro
Dercy tinha a dignidade dos bufões
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
A carreira teatral de
Dercy não pode
ser medida por parâmetros comuns. Atriz de
um personagem só, fosse
fazendo a Dorotéia de Nelson Rodrigues ou a Dama
das Camélias de Dumas
Filho, o que oferecia à platéia ávida de escândalo era
o caco escrachado, o palavrão aprendido com os cômicos portugueses, o cuspe na primeira fila, que,
mais que agressão, era
transbordamento.
Inútil ter Stanislavsky
por referência, ou Brecht,
que amava a espontaneidade do ator popular. A
bufônica visceralidade de
Dercy, que fez da sua vida
espetáculo exemplar, síntese da candura de Giulietta Masina e da língua afiada de Groucho Marx, deve
ser medida pelo ritual escatológico de Artaud.
Puritana que expunha o
corpo desde adolescente
nas revistas da Praça Tiradentes, até o desfile na Viradouro, aos 84, honrando
a ambigüidade de Santa
Maria Madalena, a prostituta sagrada, patrona de
sua cidade natal, Dercy era
a velha senhora de Dürrenmatt que desmascara o
falso puritanismo às custas da própria reputação.
Dama indigna, em quem
nunca deixou de vibrar o
frescor da bilheteira de cinema que sonhava ser Pola Negri, Dercy seguiu
exemplarmente o destino
dos bufões: o de apresentar a quem quisesse um espelho distorcido que redime o grotesco de seu tempo, de assumir o ridículo
para resgatar a dignidade.
No ocaso da revista, endossou as chanchadas do
cinema nacional e o humor controlado da TV
com a mesma sem cerimônia e a liberdade de quem
nada tem a perder. O que
abriu caminho para monstros sagrados díspares como Fernanda Montenegro
e Regina Casé, Renato
Borghi e todo o dionisíaco
despudor do teatro Oficina, que mantêm o contraponto antropofágico tupiniquim ao bom mocismo
de fórmulas importadas.
Como Artaud, fez da vida palco e se sobrepôs à
precariedade do ofício
com apego tenoz e corajoso à felicidade. Desafiou o
tempo e a morte morrendo mais que centenária,
deixando galopar em poucas horas uma pneumonia
à que parecia inatingível,
como uma piada suprema.
Morre de improviso a mulher mais feliz do mundo.
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